A Polí­cia Federal e seu caldo de cultura





Satyagraha, Zelotes, Catilinária, Alegoria da Caverna

O delegado Zulmar Pimentel, ex-diretor executivo da Polícia Federal, é homem de sólida formação, versado em história, filosofia e mitologia, assuntos a que se dedica com erudição de estudioso. Daí terem surgido criativos títulos codificados para investigações de crimes de colarinho branco, fraudes e desvios. Por soarem “como grego”, serviam para ocultar o esquema das fraudes dos “ladrões de casaca”, expressão que tomo emprestada de um filme de Hitchcock.

Em 2008, a 6ª Vara Federal condenou e prendeu, via Operação Satyagraha, o banqueiro Daniel Dantas e alguns dos principais nomes envolvidos em um forte esquema. O responsável pelo desfecho, cumprido pela Polícia Federal, foi o então juiz Fausto de Sanctis, que destinou a entidades filantrópicas, por sentença, parte do dinheiro apreendido em outra apuração, além de financiar a aquisição de instrumentos musicais de qualidade para uma dúzia dos melhores alunos carentes do Conservatório de Tatuí. A ideia foi gestada durante uma conversa em festa ocorrida em São Paulo – ele, um amante da música, e eu, admirador do serviço que ele prestava à nação. Mahatma Gandhi, em sua luta pela independência da Índia, usava o termo Satyagraha, que unia as palavras “satya”, verdade, e “graha”, dura, luta pacifista que me lembra a “Revolução Dentro da Paz”, do nosso dom Helder Câmara. Enquanto na concepção do líder indiano a palavra servia para mostrar o rumo a seguir, a “nossa” Satyagraha foi à residência do banqueiro Dantas e lá a PF encontrou farto material sobre o propinoduto que abastecia contas escusas de políticos e autoridades. O codinome serviu para encobrir a ação, sob sigilo absoluto.

Da Lava Jato, que celebrizou o juiz Sergio Moro, outra mais recente, a Operação Catilinárias. Dessa vez, o título remete ao Senado romano, palco do discurso do ícone da filosofia republicana latina, Cícero (106-43 a.C.), embebido nos pensamentos de Platão (429-347 a.C.) em sua “Politeia” – aliás, nome de outra ação policial. No Senado, o cônsul Cícero acusa o golpista Lucius Catilina, proferindo seu famoso discurso: “Até quando, Catilina, vais abusar de nossa paciência? Por quanto tempo vais caçoar de todos com os seus delírios? Até que extremo vais te jogar nessa audácia sem limites?”. A série de falas de Cícero ficou conhecida como “Catilinárias”. O traidor foi condenado à morte e terminou fugindo, mas tombou em combate um ano depois. No dia 15 de dezembro passado, a Polícia Federal armou uma vasta operação contra integrantes de um partido político, cumprindo 53 mandados de busca e apreensão por ordem do STF, inclusive nas propriedades do presidente da Câmara dos Deputados e escritórios do presidente do Senado, entre outros.

Outra operação de vulto é a “Zelotes”, que investiga supostos desvios e corrupção no Carf (Conselho de Arrecadação de Recursos Fiscais), do Ministério da Fazenda, que autua e executa por diversos tipos de sonegação. Como apenas metade dos conselheiros é composta por auditores concursados e a outra parte é voluntária, ou seja, trabalha “de graça”, o presidente do Sindfisco, Claudio Damasceno, diz que são facilmente seduzidos por “agrados” de empresas arroladas nos autos. No rastro da Zelotes, o ex-presidente Lula foi intimado a depor, a fim de prestar esclarecimentos acerca de supostas influências em medidas provisórias do governo federal, além de explicar contratação de mais de 2.5 mi à empresa de seu filho mais novo.

Zelotes de Tessalônica, em meados do século 14, foi um grupo travestido de luta por conquistas sociais. No século 1, os zelotes insuflavam o povo judeu contra o Império Romano, ameaçando-o com o uso da força. Em hebraico, traduzido como zelotés, designa quem defende o nome de Deus, mas na verdade era uma espécie de confraria do mal, e teria provocado a derrubada de Jerusalém e do Templo de Iaweh, construído por Salomão, sagrados ao povo hebreu. Terminaram cometendo suicídio coletivo.

Em Juazeiro do Norte, no dia 10 de dezembro, a Polícia Federal deflagrou a Operação Alegoria da Caverna contra um grupo que fazia uso de coletes oficiais, documentos falsos, posse ilegal de armas e invasão de domicílios, acusados também de formação de quadrilha. Seus membros identificavam-se como sendo da Polícia Ferroviária Federal, que apesar de prevista na Constituição nunca foi instituída. Os mandados foram cumpridos por determinação da 16ª Vara Federal em operação que leva o nome do texto, também conhecido como “Mito da Caverna”, do filósofo grego Platão. No livro 7 de seu “Politeia” (“A República”), o filósofo ensina o caminho para nos libertarmos da escuridão da qual somos reféns, em busca da luz da verdade – e o perigo de voltarmos.

Uma das operações policiais criadas pelo ex-delegado Zulmar Pimentel quase o fez morrer do próprio veneno: na chamada “Navalha”, em 2007, a própria passou rente ao seu pescoço: tentaram incriminá-lo pelo vazamento de informações do esquema, que investigava empresários e funcionários do governo. Foi gerado um processo administrativo (PAD), depois arquivado, e a ação no STJ foi travada por liminar. O autor teatral Plínio Marcos, se vivo, provavelmente teria sugerido o título “Navalha na Carne”, nome de uma de suas peças mais importantes, que tem como personagens um gigolô, uma prostituta e um travesti, e como cenário o quarto de um prostíbulo. Se é que não foi ela própria que serviu de inspiração ao então delegado.