Henrique Autran Dourado
Há mais de 20 anos fui parecerista da Fapesp por uns tempos. Convidado por via eletrônica, não sei quais foram os propositores do meu nome, mas senti-me na obrigação de aceitar. Meu trabalho era nas artes, que nem sei se ainda estão lá devido à atual crise econômica, e cada área de pesquisa tinha seus pareceristas. Eu recebia os projetos eletronicamente e nunca tive contato com quem eu estaria julgando. Analisava desde a razoabilidade financeira da proposta à consecução do projeto, além de sua relevância e, claro, objetividade, clareza e redação. Assim, uma vez julgado, retornava o material por via eletrônica com observações e eventuais ressalvas, aprovando-o ou não.
Há três anos, minha filha Isabela, aos 21, formou-se em química na USP, recebendo do Conselho Regional de Química o prêmio de melhor aluna do período 2013-2016. Passou a mergulhar com afinco na elaboração de seu projeto de pesquisa com vistas a uma disputada bolsa-auxílio da Fapesp, sua opção preferida, ingressou no doutorado direto (sem necessidade de mestrado) e obteve a cobiçada bolsa. Sua área de atuação é química associada à biomédica, e o objeto da pesquisa foca em próteses biodegradáveis para o corpo humano. Pela Fapesp, foi para Ohio, EUA, e com uma pequena equipe de brasileiros e americanos palestrou e pôde dividir conhecimentos. Após o retorno, engajou-se com entusiasmo ainda maior no trabalho, passando dias inteiros no laboratório do Instituto de Química da USP.
Depois dessas duas vivências em épocas distintas passei a conhecer melhor e admirar cada vez mais a Fapesp. Como ex-parecerista, recebo notícias e newsletters da entidade de fomento criada pela Constituição Estadual de 1947, leio sobre as conquistas e avanços tecnológicos em todas as áreas do saber científico, com ênfase para o campo médico. Mais recentemente, os avanços no estudo e combate à Covid-19 – do isolamento do genoma do vírus à construção de respiradores de baixo custo, testes com o anti-inflamatório Colchicina, no HC-USP de Ribeirão, e, na semana passada, a parceria da Omni-eletrônica com o HC da Faculdade de Medicina da USP para a produção de um aparelho que capta a presença do coronavírus no ar em ambientes com aglomeração.
Em 1988, houve uma greve geral das universidades públicas. Um acordo feito entre o então reitor José Goldemberg e o governador, à época Orestes Quércia, foi sacramentado por decreto e anos depois enviado à Assembleia Legislativa para que as três públicas do estado de São Paulo e a Fapesp não tivessem seu orçamento sujeito a oscilações políticas, mas baseados em percentuais da arrecadação do ICMS, hoje fixados em 5,0295% para a USP, 2,3447% Unesp e 2,1958% Unicamp, totalizando 9,57%. Para a Fapesp, foi aprovado o percentual de 1%, com a salvaguarda da autonomia universitária determinada pelo art. 207 da Constituição Federal, que diz, em seu caput: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.
Apesar disso e de todas as conquistas mundialmente reconhecidas da Fapesp, no dia 13 de agosto o Executivo de São Paulo protocolou na Assembleia Legislativa o projeto de lei nº 529/20, que trata de inúmeros assuntos ligados às finanças do estado. Salta aos olhos o artigo 14, que ou não mereceu os devidos estudos ou simplesmente ignorou como funcionam as entidades de fomento. Diz o caput: “O superávit financeiro (sic) apurado em balanço patrimonial das autarquias (…) e das fundações, será transferido ao final de cada exercício à Conta Única do Tesouro Estadual.”
Entre as mencionadas autarquias e fundações estão as universidades públicas e a Fapesp. Parece que enxergam a Fundação como fosse um órgão da administração direta, que devolve ao Tesouro do Estado, a cada chamado exercício findo, eventuais excedentes – assim como acontece com secretarias e outros órgãos da administração direta. Ora, como funciona a Fapesp? Ela recebe a dotação de 1% prevista na Constituição Estadual e a aplica em conformidade com a autonomia determinada pela Constituição Federal.
Tecnicamente, desconsideraram ainda que nas universidades e na Fapesp é vital a continuidade das pesquisas em curso. Pesquisadores recebem mensalmente bolsas por até três anos, e uma vez aprovados os projetos as verbas são direcionadas à consecução do trabalho. Portanto, ao acatar um projeto para esse período, compreende-se desde já uma previsão da verba até o prazo final, o que desarma qualquer tese de superávit, “surplus” ou excedente. Por motivos óbvios, a Fundação não pode suspender ou abortar projetos em curso ao final de cada exercício, pesquisadores sequer usufruem de férias.
Até o presente momento, acumularam-se 623 emendas parlamentares propondo, com justificativas, alterações no texto do PL, incluindo 45 delas sobre o art. 14, que trata das autarquias e fundações, e especificamente das universidades e Fapesp. É preciso que os parlamentares ouçam a comunidade acadêmica; urge fazer as alterações no mencionado artigo para que a pesquisa no estado de São Paulo prossiga sem rupturas em seu trabalho de vanguarda e excelência reconhecido internacionalmente. Segundo as chamadas “Leis de Rolland”, a doutrina da continuidade dos serviços públicos é a mesma que rege a continuidade do próprio Estado. Que haja responsabilidade e sensatez nesta hora por parte do Legislativo.