Dissecando a mentira

Henrique Autran Dourado

Eu nunca diria “nunca antes neste país”, porque, mesmo certo mas sem segurança, pareceria estar mentindo, a despeito de não fazê-lo. Poderia, talvez, dizer “nunca antes em minha vida” (se mentisse, não seria comprovável). Pois nunca vi tanta mentira, tanto embuste, enganação e lorota como hoje. Veja o fake, cuja consagração nas mídias equivale a um Grammy, enquadrando com ouro os embustes: a falsidade se torna tão real que pode usurpar o espaço da verdade. O resto, ah, fica por conta da boca do povo, “telefone sem fio” que transforma tudo em verdade, até esquecermos onde a dita cuja foi parar.

Segundo o caderno de filosofia Neurohacks, da BBC (26/10/16), uma equipe de cientistas liderada pela Drª Lisa Fazio saiu em campo para investigar como a ilusão do “efeito da verdade” interage com a nossa mente, se ela alteraria o conhecimento. Foram contrapostas afirmações verdadeiras e não verdadeiras, como “O Oceano Pacífico é o maior oceano da Terra”, a outro exemplo conhecido, “O Oceano Atlântico é o maior oceano da Terra”, item não verídico que as pessoas podem terminar reconhecendo como “verdade verdadeira”. O pesquisador Tom Stafford afirma que um fato pode tornar-se verdadeiro, mesmo sem o ser, e a compreensão desses efeitos pode ajudar o indivíduo a evitar as ciladas da propaganda.

Um princípio no qual teria se baseado Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, ao supostamente proferir o corolário “Uma mentira repetida dez vezes se torna verdade”, é: quanto mais o indivíduo ouve algo, mais nele crê como verossímil, e quanto mais ele o repete mais acelera seu efeito multiplicador. Mc Luhan, nos anos 1960, em “O Meio É a Mensagem” (com o trocadilho em inglês mensagem/“mass-age”, “era das massas”) estudou os efeitos dessa multiplicação. (Ainda nas décadas pós-Goebbels/McLuhan, pesquisadores interpolaram um quadro entre os demais 23 na película com que se fazia cada segundo de filme naquela época, criando um efeito subliminar – ou seja, este quadro, entre os demais 23, em um segundo, não seria percebido e compreendido de forma liminar. Para confirmar, em experiências feitas em salas de cinema, naquele quadro “invisível” estava o logo da Coca-Cola com fundo vermelho, imagem que ficaria gravada no subconsciente de cada um e, terminada a sessão, teria multiplicado a sede do público pelo refrigerante, nos quiosques do saguão de entrada.

Fazer confusão, mesmo que seja no vaivém, no mente-desmente e mente novamente, faz ressurgir o efeito Pacífico-Atlântico, às vezes com grande impacto. Certa medicação inócua para combate à Covid, propagandeada insistentemente, foi usada apesar de desmentida sua eficácia. “Fulano é ladrão” (ou não é), o eu disse mas não disse, e até o famoso “a imprensa distorce tudo, coloca tudo fora de contexto”, generalizando a afirmação para desacreditar a fonte, personificando-a na “imprensa” como una. Ao final, prevalece o que for mais forte, mais verossímil, em geral o que foi mais repetido. Um exemplo desse efeito verso-reverso: recentemente, um certo senador declarou, por espontânea vontade, que teria tido uma reunião para que o atual presidente fosse impedido de tomar posse e um ministro de corte superior intempestivamente preso. Depois, renunciou ao mandato, modificou a narrativa e retirou sua renúncia, tendo terceiros a causar ainda mais confusão ao imbróglio, para que ficasse o dito e o redito por não dito. Um ex-político e ex-instrutor da conhecida Swat norte-americana estaria na crista da onda da suposta armação, mas, duro na queda, treinado no esquadrão de elite americano, desfez e fez mais confusão. Experiência como ator ele tem: no filme “Tropa de Elite”, de José Padilha e Marcos Prado, treinou atores na simulação de investidas da polícia em favelas. Restam aos que deverão questioná-lo judicialmente nos velhos documentos dos autos, acareações e instrumentos forenses de praxe, uma vez que na habilidade de prestidigitador ele é mestre (não à toa, ele teria sido o “eleito” para engambelar e grampear um ministro de tribunal superior).

O suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), psiquiatra e psicanalista, tinha certa obsessão pelos subterrâneos da mentira, como em “O Indivíduo Moderno em Busca de uma Alma”: “… mas nós não podemos viver o entardecer da vida conforme o programa de vida da manhã – porque o que era grande de manhã será pequeno à noite, e o que de manhã era verdade terá se tornado mentira à noite”. E como, em grau diminuto, a mentira está presente em nosso dia a dia: “A observância de leis e costumes pode facilmente ser um manto para encobrir mentira tão sutil que nossos companheiros, seres humanos, são incapazes de detectá-la”.

Há aquela mentirinha social: “não posso ir, não passei bem”, ou “belo quadro”, “justamente o que eu esperava”, para agradar, e a comercial: “está novinha”, quando usada, “custa o dobro por aí”. Mas a pior, a pior de todas, é a mentira política, pois ela sangra os cofres públicos e faz uma volta para ir dar na conta de um parente ou em uma mansão no exterior. O real mentiroso age tão bem que chega a achar que a falsidade que prega é verdadeira, e quando a desmente, sente estar mentindo, e o faz com a convicção ao avesso.

“Acima de tudo, não minta para você mesmo. O homem desleal a si próprio que ouve sua própria mentira chega a um ponto em que não pode discernir a verdade, e perde o respeito para consigo mesmo e os outros. Não havendo respeito, ele para de amar” (Fyodor Dostoievsky: “Os Irmãos Karamazov”).