Qualidade de ensino do Conservatório de Tatuí pode ter prejuízo, aponta maestro

Para Edson Beltrami, medidas adotadas pela Sustenidos ‘descaracterizam’ o CDMCC

Beltrami sustenta que o modelo de ensino do CDMCC é responsável pelo sucesso da escola de música (foto: Arquivo pessoal)
Da reportagem

Mudanças propostas para o Conservatório Dramático e Musical “Dr. Carlos de Campos”, de Tatuí, pela atual gestora, a Sustenidos Organização Social de Cultura, estão preocupando profissionais da instituição, conforme afirma o maestro Edson Beltrami.

Ao jornal O Progresso de Tatuí, o titular da Orquestra Sinfônica do Conservatório de Tatuí, que atua há mais de 30 anos como professor na escola de música tatuiana, sustentou que a Sustenidos propõe mudanças administrativas e pedagógicas que “podem trazer prejuízos à qualidade do ensino de música do CDMCC”.

Segundo Beltrami, o que mais preocupa os professores e funcionários da escola é a “descaracterização” do método de ensino da escola de música, principalmente em consideração ao modelo de “monitoria” – ameaçado pela demissão dos professores monitores.

A gestora anunciou o rompimento de contrato com pelo menos 50% dos professores monitores em reunião virtual promovida no dia 29 de setembro, com representantes da diretoria da OS e professores da escola.

Nela, a organização revelou a intenção de reformular a parte artística e pedagógica a partir de 2022, cortando metade dos monitores dos mais de dez grupos artísticos da instituição (Banda Sinfônica, Orquestra Sinfônica e Jazz Combo, entre outros).

Beltrami argumenta que o modelo de monitoria seguido até então pelo Conservatório de Tatuí tem a finalidade de preparar o estudante de música para a “realidade do mercado de trabalho, oferecendo a prática em grupos artísticos, ao lado de profissionais e solistas de alto nível”.

Segundo o maestro, o método de manter monitores nos grupos artísticos para ensinar os alunos durante a prática surgiu no início do CDMCC e é usado há mais de 60 anos, sendo o “principal motivo” da procura pelo ensino da música no Conservatório de Tatuí.

“Toquei dez anos na Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) e posso garantir que o que me fez tocar e ter sucesso foi ter entrado na Orquestra Sinfônica do CDMCC e tocado ao lado do meu professor”, acentua o maestro, apontando que ele e muitos outros ex-estudantes, hoje em orquestras do Brasil e do exterior, passaram pela experiência de tocar com profissionais durante o processo de aprendizagem.

Para justificar as demissões, a diretoria informou, na reunião virtual ocorrida em setembro, que a intenção é dar mais protagonismo aos alunos e fazer com que os grupos pedagógico-artísticos passem a ser integrados exclusivamente por estudantes da instituição.

Já o maestro defende que não há motivos para a mudança e afirma que toda a estrutura pedagógica do Conservatório de Tatuí, colocada em prática por décadas, não é “pensada ao acaso”.

Beltrami ressalta que o primeiro passo quando o aluno entra no CDMCC, ainda criança, é participar da “orquestrinha” infantil. Nos anos seguintes, conforme o desenvolvimento das aptidões, os estudantes passam para as orquestras Infantojuvenil, Juvenil e Jovem, que são grupos compostos exclusivamente por alunos.

Por fim, quando o aluno está se formando e tem mais “bagagem musical”, ele vai para a Orquestra Sinfônica, ou para um grupo artístico, tocar com músicos profissionais e receber um treinamento “próximo da realidade” do mercado de trabalho.

“Os alunos já têm protagonismo, tanto na Sinfônica, tocando ao lado dos profissionais – onde eles têm essa honra, esse prazer – quanto nas orquestras jovens e bandas jovens, que são exclusivas para os alunos. Então, não vejo justificativa nenhuma para este tipo de mudança”, reforçou o maestro.

Ele ressalta que a função do Conservatório é “treinar o músico para o mercado”. “Nós temos que dar este treinamento, e nada melhor do que ele sentar ao lado de um profissional para ter uma experiência da forma mais real do mercado e fazer um repertório como ele vai enfrentar”, reforça.

Para Beltrami, nenhum modelo sem os monitores poderia substituir o que existe atualmente no Conservatório de Tatuí. Ele afirma que modificar o método também pode prejudicar a carreira do estudante de música, enfatizando que, com as mudanças propostas, haverá uma consequente limitação do repertório dos grupos artísticos.

De acordo com o maestro, os professores monitores do CDMCC são solistas de orquestras e bandas. Sem eles, garante, “não há como tocar boa parte das sinfonias de alto nível exigidas pelo mercado”.

“As sinfonias de Brukner e Sibelius, por exemplo, isso acaba. Nunca mais vai dar para fazer. O repertório terá de ser baseado em peças com maior facilidade técnica para o nível dos estudantes, o que também traz prejuízos para o nível dos grupos”, acrescenta.

Um das justificativas da OS para a demissão dos professores é investir o valor gasto atualmente com monitores no oferecimento de mais bolsas de estudo e no aumento dos meses de duração desse benefício junto aos alunos bolsistas.

Entretanto, o maestro acentua que, para manter a qualidade dos grupos artísticos, o CDMCC tem uma série de exigências quanto ao nível musical dos bolsistas e, por consequência, não tem conseguido preencher sequer as vagas de bolsas já oferecidas nos dez grupos artísticos.

“Neste ano, abrimos três editais – inclusive, aceitando alunos de fora – e não conseguimos preencher todas as vagas porque não tem aluno suficiente, a não ser que você saia distribuindo as bolsas sem critério algum, o que é o pensamento de alguns outros lugares”, frisa.

O maestro classifica a “peneira” natural que ocorre nos cursos, no decorrer do processo de formação, como uma das responsáveis pela falta de alunos qualificados para a formação dos grupos artísticos.

“Trabalhei como assessor artístico e sei que nós não temos estudantes suficientes para montar uma orquestra ou banda sinfônica só com eles”, comenta o maestro.

“Existe um filtro natural: os primeiros anos têm muito mais alunos, mas, até o final do curso, a quantidade é muito reduzida. Isso é normal”, observa.

Para o maestro, a única forma de a escola conseguir alunos suficientes para a formação dos grupos artísticos seria juntar os estudantes do nível intermediário (terceiro e quarto ano) e alunos em final de curso na mesma orquestra ou banda sinfônica, “o que pedagogicamente não é viável e reduziria muito o nível musical dos grupos”, argumenta.

Beltrami ainda destaca que todas as modificações indicadas pela Sustenidos integram a proposta técnica e orçamentária do chamado plano estratégico de atuação da entidade, conforme apresentado à Secec em 2020, com cortes de funcionários.

“É uma síndrome: quando entra uma nova administração, quer mudar tudo, e as pessoas, às vezes, têm tanta convicção de que estão corretas que saem mudando tudo. Mas, não é assim. O Conservatório tem uma história, as pessoas têm que saber o que funciona e o que não funciona”, defende Beltrami.

Demissão de monitores

O maestro ainda revelou estar insatisfeito com outras situações ocorridas nos últimos meses na administração da Sustenidos. Ele, inclusive, aponta que a reunião realizada com os monitores para o anúncio das demissões ocorreu após ele ter externado a insatisfação junto à gestora.

Beltrami contou ter sido chamado para uma reunião com a diretoria, no final do mês de setembro, na qual a OS notificou-o sobre a demissão dele do cargo de titular da Orquestra Sinfônica, a partir de 2022, e pediu para que indicasse quais monitores deveriam ser demitidos.

“A minha demissão é normal, isso é comum no meio dos regentes e maestros. O que não foi normal é me pedirem auxílio na escolha dos monitores que seriam demitidos”, afirmou.

“Isso não só é moralmente errado, como é incoerente, porque passei o ano inteiro defendendo os monitores e o modelo de monitoria, que é um modelo que funciona”, reiterou.

A princípio, o maestro negou qualquer indicação, porém, depois, decidiu enviar um e-mail à diretoria, com cópia para os monitores, com uma tabela apontando os monitores a serem demitidos (na qual escreveu “zero”) e os que deveriam ficar (em que apontou “todos”).

“As demissões aconteceriam de qualquer forma, então, achei melhor fazer isso para que os monitores não fossem pegos de surpresa”, justificou o maestro.

Conforme anunciado anteriormente pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa, com a mudança, a função dos atuais monitores (músicos/atores contratados como integrantes dos grupos) foi revista.

Por isso, o nome do cargo será alterado para “professor de grupos artísticos”, cuja atribuição será dar suporte na preparação de repertório, nos ensaios e nas demais necessidades artístico-pedagógicas dos bolsistas.

“Isso tudo é só uma forma de ‘acabar’ com o Conservatório. Eu não gosto muito deste termo, mas, de fato, se mudarem todo este esqueleto que temos desde que o Conservatório foi criado, reduzirão o nível da instituição. Ou seja, o ensino vai ter o estágio final um degrau abaixo do que é hoje”, reforça o maestro.

A Sustenidos Organização Social de Cultura também é gestora do Projeto Guri desde 2004 e, mais recentemente, assumiu a direção do Complexo do Theatro Municipal de São Paulo.

“O Guri é ótimo, tem um papel social muito importante, mas o Conservatório é profissionalizante; nós formamos profissionais para o mercado, para as universidades, para o exterior, é isso que a gente faz”.

“Ele cumpre uma função social de forma indireta – claro, principalmente para a comunidade de Tatuí. Mas, há uma diferença muito grande (entre Guri e Conservatório), e eles não podem ser tratados com a mesma filosofia, com o mesmo pensamento”, completa o maestro.

Atualmente, o Conservatório de Tatuí conta com 158 professores, sendo que 68 desempenham a função de monitores de grupo. Os nomes dos profissionais que serão dispensados ainda não foram divulgados.

“A extinção do modelo de ensino do CDMCC é o que mais preocupa e, para mim, a justificativa de falta de recursos financeiros também não é suficiente. Talvez seja idealismo, mas acho que sacrifício tem que ser feito, e não é para o lado do dinheiro que a balança pesa”, acentua.

Ainda conforme o anunciado na reunião virtual, para os monitores que permanecerem na instituição, também haverá mudanças. Todos serão dispensados dos cargos de monitores e passarão a ter vínculo empregatício apenas como professores de grupos artísticos.

Atualmente, os profissionais que trabalham nos grupos artísticos têm duplo vínculo empregatício. A intenção é manter um único contrato, apontado para o profissional fazer parte dos grupos artísticos e com o recebimento de horas-aulas equivalentes.

“Não podemos esquecer dos monitores que não possuem o vínculo como professores. Isto é, são apenas monitores. Estes perderão tudo”, adiciona o maestro.

“É uma mistura de falta de conhecimento e teimosia. As pessoas estão desesperadas, a verdade é essa. Eles estão em contato comigo, professores, monitores, por diversos problemas que estão ocorrendo. A questão da monitoria é a mais urgente, mas tem outras no geral”, afirmou.

Substituição de Edson Beltrami

Outra situação preocupante, conforme o maestro, é o fato de o substituto dele ser de São Paulo e ter poucos horários para estar em Tatuí, resultando na redução do número de ensaios da orquestra.

O músico anunciado para ocupar o cargo de titular da Orquestra Sinfônica do Conservatório de Tatuí, a partir de 2022, é o violinista e maestro italiano Emanuelle Baldini, atual spalla da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo e membro do Quarteto de Cordas Osesp.

“Ele é um ótimo músico. Porém, é spalla da Osesp, e a orquestra tem folga somente às segundas-feiras. É quando ele vai vir para cá. Eles (a Sustenidos) falaram que terá um assistente aqui para fazer uma atividade, mas não serão mais três ensaios na semana. Tudo colabora para cair o nível do trabalho, é uma tristeza”, lamentou.

O maestro também falou sobre o argumento utilizado pela Sustenidos quanto à falta de recursos financeiros para manter os monitores e a estrutura pedagógica atual do Conservatório de Tatuí.

“Essa conta não fecha nem filosoficamente, com a história de dar protagonismo para os alunos, e nem financeiramente. Nós mantivemos essa estrutura com R$ 19 milhões – levando em conta os cortes, contingenciamentos e até os processos trabalhistas iniciados dez, 15 anos atrás, restando os R$ 19 milhões para a utilização”, observou Beltrami.

“Eles (Sustenidos) vão ter mais de R$ 27 milhões neste ano, isso sem contar com a carteira de patrocinadores que eles supostamente teriam”, acrescentou.

Conforme dados divulgados pela SCEC, os orçamentos do CDMCC foram em 2018 e 2019, respectivamente, de R$ 24,2 milhões e R$ 26,1 milhões.

Quanto ao de 2020, firmado em R$ 23,6 milhões e que sofreu corte de 14%, a pasta explica ter ocorrido a diminuição por conta da pandemia. Já em 2021, por sua vez, a secretaria ressalta ter elevado o orçamento para R$ 26,6 milhões e ainda antecipa a previsão de R$ 27,5 milhões para 2022.

“O modelo de ensino do CDMCC é o que tem importância. Apesar de a escola vir se adaptando pelas mudanças sociais ocorridas nas últimas décadas, este ‘esqueleto’ permaneceu, e tem que permanecer, porque foi ele que fez o Conservatório ser o que é e ter o sucesso que tem – ou teve, pelo menos até o momento”, concluiu Beltrami.


Biografia do maestro Edson Beltrami

 

Edson Beltrami é formado em flauta transversal no Conservatório de Tatuí e vencedor de mais de uma dezena de concursos, incluindo o Prêmio Eldorado de Música. Atuou por mais de 10 anos como primeira-flauta solo convidado da Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo).

 

Como flautista e maestro, atuou nos mais importantes palcos do Brasil e do mundo, como Avery Fisher Hall (Lincoln Center, Nova Iorque, Estados Unidos), MET – Metropolitan (Nova Iorque, Estados Unidos), Bunka Hall (Kobe, Japão), Kobe Shinbun Matsukata Hall (Kobe, Japão), Harris Theater (Chicago, Estados Unidos), Broward Center (Florida, Estados Unidos), Sala São Paulo, Theatro Municipal de São Paulo, Teatro Municipal do Rio de Janeiro e outros.

 

Desenvolve também carreira como compositor, tendo obras editadas e publicadas nos Estados Unidos  pelas editoras Cayambis Music Press http://www.cayambismusicpress.com) e Brazilian Music Publications (http://brazilianmusicpublications.com), além da HeBu Musikverlag, na Alemanha (https://www.hebu-music.com/de/suche/?s=Edson+Beltrami).

 

Por 20 anos foi regente da Orquestra Sinfônica Jovem do Conservatório de Tatuí, grupo do qual foi um dos criadores.

O maestro também teve a oportunidade de dirigir inúmeros grupos no Brasil e no exterior, como:Orquestra da Academia de Lyon (FR), Orquestra Sinfônica Nacional de Paraguai, Banda Sinfônica do Estado de São Paulo, Banda Sinfônica Juvenil do Estado de São Paulo, Orquestra de Cordas do Ateneo Paraguayo, Orquestra do Festival de Inverno de Campos do Jordão e Banda Sinfônica do Festival de Inverno de Campos do Jordão.

 

Beltrami também foi por 10 anos flautista e regente associado da Orquestra Filarmônica Bachiana do Sesi-SP e é colaborador do projeto “Orquestrando São Paulo”, do maestro João Carlos Martins.

 

Nesse projeto, foi o responsável pela criação, em 2017, do curso “Técnicas e Boas Práticas para Regentes de Orquestras e Grupos Musicais do Sesi-SP”, visando à capacitação e aperfeiçoamento de regentes -educação a distância, realizado através do portal de educação do Sesi, que já está na 22ª turma – e, em 2019, assumiu a continuação do curso “Práticas de Desenvolvimento de Grupos Musicais”. Nos dois cursos, foram atendidos mais de 3.000 alunos.

 

Durante a carreira, o maestro trabalhou com solistas de renome, como Pinchas Zukerman (Israel), Amanda Forsyth (Canadá), William Bennett (Inglaterra), Angela Jones-Reus (Alemanha e Estados Unidos), além de Arthur Moreira Lima, João Carlos Martins, Marcelo Bratke, Elisa Fukuda, Antonio Lauro Del Claro e muitos outros.

 

O maestro também foi assessor artístico do Conservatório de Tatuí de 2018 a 2019 e, atualmente, é maestro titular da Orquestra Sinfônica do Conservatório de Tatuí.