O que farão com a nossa língua?

Henrique Autran Dourado

Recentemente minha filha, química que mora na Bélgica, ao ler uma decisão judicial que lhe mandei porque nos interessava, perguntou-me: por que juízes e advogados escrevem tão complicado? Não poderiam fazê-lo de um jeito que todo mundo pudesse entender? (A primeira coisa que me veio à cabeça foi: por que vocês químicos, teóricos e laboratoristas também não redigem de forma mais simples, sem hieroglifos, para que todos compreendam?) Respondi de forma mais ou menos simples: é uma espécie de linguagem formal da profissão. Há fórmulas e vocabulário consagrados nesse jargão forense que são usados daqui ao Oiapoque e ao Chuí, viajando para lá e para cá entre palavras e expressões latinas. Não é uma linguagem concebida “para todo mundo entender”, ela visa apenas ao seleto grupo que participa de determinado assunto ou processo, que está envolvido nele ou no estudo de seu fazer. E isso também vale para os técnicos em astronomia, virologia, especialistas em inteligência artificial e por aí vai. E abriga o dialeto particular de neurocientistas, lexicólogos e psicanalistas, assim por diante.

O estudo de algum assunto muito específico – voltemos aqui à música popular – pode ser, digamos assim, “eruditado”, na medida em que quem examina o assunto usa uma visão analítica complexa, com certeza apenas para ser entendida pela sua classe, e não o público em geral. Um bom exemplo dei outro dia acerca da própria palavra “erudição”, a respeito de uma antiga polêmica acerca da expressão “música erudita”, que teria – grifo, teria! – sido criada por Mário de Andrade. Mas nem perto, Mário fez apenas uma alusão a um certo “transporte erudito” do eminente professor Florestan Fernandes (“Mário de Andrade e o Folclore Brasileiro”. SP: Revista do Arquivo Municipal, vol. XCI, 1946): “Os contatos iniciais da arte popular com o folclórico, portanto, perdem o caráter de um compromisso estreito com a tradição para adquirir, ao contrário, o caráter de libertação natural do tradicional”. (Em tempo: tive a honra de ter sido colaborador em estudos de políticas públicas na área da Cultura do Instituto Florestan Fernandes para a cidade de S. Paulo).

Este conceito de Fernandes, a “transposição do folclore para o campo erudito”, claro, é o de um sociólogo de vulto, não o de um folclorista. A passagem da “transposição do folclore para o campo erudito”, deve, sim, ser creditada a ele, Florestan Fernandes, Patrono da Sociologia Brasileira (Lei nº 11.325/2006). Processo visto, portanto, mais aos olhos de um cientista social do que de folcloristas como Mário de Andrade e Câmara Cascudo.

Segundo o conceituado etimólogo Deonísio da Silva, em seu “De Onde Vêm as Palavras” (RJ: Ed. Lexicon, 2004), erudito vem do latim “eruditus”, “palavra formada de ‘ex rudis’- aquele que deixou de ser rude, (…) tornou-se instruído”, com toda a carga de preconceito que essa origem possa trazer. Designa também os que, como o pedante gramático Antônio de Castro Lopes, rejeitam as contribuições populares de nossa língua: propôs substituir abajur por “lucivelo”, anúncio por “preconício”, cachecol por “castelete”. Machado de Assis deu-lhe o troco: “nunca comi ‘croquettes’, por mais que digam que são boas, só por causa do nome francês. Tenho comido e comerei ‘filet de boef’, com a restrição mental de estar comendo lombo de vaca”. Completa dizendo que “‘fillet de boeuf’ virou (…) bife, apenas, com um sotaque meio ridículo. “Os gramáticos, como o sapateiro de Apeles, não podem sair das sandálias” (dar pitaco em assunto que não conhecem).

Assino a comparação de Machado, que fez um acréscimo de fina ironia: “… à semelhança dos sexólogos, que podem orientar-nos; jamais nos substituir na hora de falarmos ou escrevermos”. A proposta do gramático Antônio de Castro Lopes de “eruditar” a língua chega a ser ridícula, enquanto a fala de Machado rebatendo-o é simplesmente hilária e saborosa. Lembra de novo o próprio Mário de Andrade: “Você sabe o que é ‘singe’, mas não sabe o que é guariba. Pois é macaco, seu mano, que só sabe o que é da ‘estriba’” (você sabe o que é ‘singe’ [macaco, em francês], mas não sabe o que é guariba [em português] … e só sabe o que é ‘da estriba’, estrangeiro).

Estratégias eruditas para uma nova arte: Caros amigos, o desenvolvimento contínuo de distintas formas de atuação nos obriga à análise das posturas dos órgãos dirigentes com relação às suas atribuições. Por outro lado, a consulta aos diversos militantes talvez venha a ressaltar a relatividade das diretrizes de desenvolvimento para o futuro. Não obstante, a contínua expansão de nossa atividade pode nos levar a considerar a reestruturação das novas proposições.

Não, não fui eu o autor: este último parágrafo foi 100% elaborado por um mecanismo da internet chamado “Gerador de Lero-lero”, e não quer dizer coisa alguma (conheça em lero-lero.bgn.com.br). O “Gerador” é uma simples brincadeira, mas pegou e ainda faz “piada séria” sobre qualquer assunto. Hoje, já existe uma forma aprimorada de inteligência artificial, bem à frente do Gerador, que chega a enganar os mais incautos: o ChatGPT (link: openai.com), mecanismo de software extremamente complexo, capaz de maravilhas que parece fazerem sentido, ou quase, elaborando textos com aparente exatidão. Aparente. Só imagino o que essa ferramenta poderá fazer, sozinha, com o universo erudito, muito em breve. Um “samba do crioulo doido” em tempos de informática de última geração. O que farão com a nossa língua?