O caso do estranho atentado a Cristina Kirchner

Henrique Autran Dourado

Segundo o The Guardian (2/09), filmes mostram um homem forçando passagem entre militantes e aproximando uma pistola contra o rosto de Cristina Fernández de Kirchner, vice e ex-presidente da Argentina. Jornalistas disseram que a arma apontada contra Kirchner não foi disparada, e ela teria se agachado. Por que este homem não a matou, tendo a posição, a arma com cinco balas no pente e a ocasião? Esta é a pergunta que intriga investigadores, alimenta especulações e controvérsias: ainda segundo o Guardian, o ministro da Segurança Aníbal Fernández disse que a pistola estava carregada, e “não disparou apesar de o gatilho ter sido puxado”. Há contradição entre testemunhas, jornalistas e o ministro, que tem fortes ligações com Kirchner.

A perícia dará a palavra final sobre controvérsias básicas, já que é estranho várias pessoas dizerem que a arma “sequer foi disparada”: resíduos de pólvora na mão do criminoso, na arma, marca na cápsula (ou não), munição tão velha que sequer machuca – o que definitivamente não foi o caso – ou que nem sai da cápsula, “bala podre”. As declarações do ministro Aníbal Fernández de que o gatilho chegou a ser puxado mas não houve disparo, e do presidente Alberto Fernández de que Kirchner sobreviveu “porque a pistola, carregada com cinco balas, não disparou” são plausíveis, mas há mais arestas e dissensões do que convergências.

(A esta altura, leitores aficionados de Sir Conan Doyle, autor de mais de 60 livros sobre Sherlock Holmes, e Agatha Christie, “A rainha do crime”, já estão elucubrando alguma charada macabra: Alberto, o presidente argentino, tem Fernández no sobrenome, assim como o ministro Aníbal e a própria Cristina Kirchner. Mas quem arriscaria um “elementar, meu caro Watson”, ou faria o jogo da culpa do “Assassinato no Expresso Oriente”? Fernández é um sobrenome razoavelmente comum na Argentina, difícil extrair alguma coisa daí.)

Conforme o jornal El Clarín (2/09), o suspeito (N.: mais do que suspeito: foi preso em flagrante) se chama Fernando André Sabag Montiel, é brasileiro, tem 35 anos e uma passagem de pequena monta na Polícia; usa tatuagens com símbolos neonazistas, como o “sol negro”, e fazia referências a grupos extremistas nas redes sociais.

Alguns militantes relataram ao jornal La Nación que “o gatilho não chegou a ser apertado, e nenhum tiro foi disparado”. Divergências cabais, já que outros disseram: “estávamos fazendo um cordão de isolamento, e de repente (…) o homem apertou o gatilho”. Logo surge a coloração política de filmes dos anos 1970: no dia 23 de agosto – pouco mais de uma semana antes -, a Promotoria argentina ingressou com um pedido de 12 anos de reclusão para a vice-presidente. Acusada de corrupção, Kirchner teria beneficiado empresários de Santa Cruz, seu berço político, e interferido em contratações de altíssimos valores para grandes obras rodoviárias – segundo o Ministério Público, enquanto ela era presidente. Especulações passaram a se avolumar: logo depois do atentado, Kirchner, depondo à Justiça em seu apartamento, disse que não teria se agachado para esquivar-se de um possível tiro, mas para pegar um livro que estaria autografando e caíra, e que soube da pistola somente após ser escoltada para fora da confusão.

A Folha deu espaço ao senador Luis Naidenoff, do partido de oposição de extrema-direita Unión Cívica Radical, que declarou que o assunto diz respeito apenas à Argentina, mas acrescentou que “o silêncio público de Bolsonaro é lamentável” (no dia seguinte, o presidente disse: “Mandei notinha. Lamento”). Naidenoff insistiu que o caso não tem nada a ver com o que ele chamou bolsonarismo. E mais: “Sabemos que Bolsonaro vem fazendo declarações contra o peronismo” (obs.: movimento do partido Justicialista, fundado por Juan Domingo Perón); “mas daí a associar as atitudes do agressor ao bolsonarismo é precipitado e raso”. Menos esclarecimentos, mais lenha na fogueira das especulações, porém dados novos poderão surgir. Naidenoff e outros dirigentes oposicionistas condenaram o atentado, e reprovaram o fato de o presidente Fernández decretar feriado na sexta, dia 2, convocando seus apoiadores para manifestações nas vias portenhas.

A luz sobre o crime tão somente no que tange ao atentado em si parece agora depender da perícia em dois pontos aparentemente simples, já que o criminoso recusou-se a depor à juíza corregedora de Comodoro Py, María Eugenia Capuchetti. Fatos nebulosos, eventuais subterrâneos e possíveis ligações perigosas do rapaz e suas conexões neonazistas e afins, se não surgirem elos robustos, cairão na vala comum das teorias conspiratórias. Brenda, namorada do criminoso, garante que ambos não são nazistas – mas o romance tem apenas um mês! (Brenda foi presa em 4/07). É claro que, de uma forma ou de outra, sem ter havido motivação clara – o rapaz pode ser um psicótico -, surgem ilações políticas pelos motivos e repercussão, ambos terrenos férteis para explorações, em momento politicamente delicado.

Rua Tonelero, Copacabana, Rio, 5/08/1954: Carlos Lacerda, inimigo visceral de Getúlio Vargas, foi ferido em um atentado em que morreu o major Rubem Vaz. Foi incriminado o chefe da Segurança de Getúlio, Gregório Fortunato – uma deixa para Lacerda acusar o presidente de ter urdido a trama para matá-lo. O então presidente suicidou-se 19 dias depois. Como no caso Lacerda, o affaire Kirchner é embalado em névoas, suspeitas e contradições, entre ficto e fato. Resta esperar.