Henrique Autran Dourado
Sucesso de Rita Lee e Roberto de Carvalho em 1985, este era o refrão da nona e última faixa do álbum “Vírus do Amor” da dupla. O vírus HIV, responsável pela Aids, surgiu por aqui em 1982, e naquele ano transformou-se em grande ameaça para a juventude, principalmente. A doença, que parecia imbatível e hoje permanece controlada após décadas, foi tornada bandeira de luta do novo regime democrático de 1985 contra o passado da ditadura. O avanço inicial sem controle do HIV ainda causou muitos estragos, ocasionando mortes de grandes artistas, mas tornou-se uma ameaça sob controle.
Rita Lee, uma linda moça da Pompeia – bairro de classe média de São Paulo – que havia estourado com o Tropicalismo junto aos irmãos Sérgio e Arnaldo Baptista, tinha rosto de boneca e corpo de princesa, e seduzia plateias com sua voz soprano de belo timbre a liderar sucessos como “Ando meio Desligado”, os outros dois membros do trio frequentemente a encorpá-la em falsete. Porém, o sucesso é sempre cruel, e as fofocas da “Candinha” – quem se lembra? – dos fãs ou rivais aliados da falta do que fazer são palco de batalhas de armas venenosas. Se Rita havia engordado ou emagrecido tantos anos depois, pouco me importava, mas a língua alheia se incomodava, e muito. Como toda jovem mulher da sua idade, cuidava-se e atraiu especulações várias, maldade que ela ironizou no rock que dá título a este artigo, dando personagem a outra doença implacável e ainda sem cura, a leucemia, o popular “câncer no sangue”.
Como Rita, muitos outros artistas também foram vítimas – senão de alguma doença, da língua ferina do povo. Não se podia emagrecer, menos ainda rapidamente, o que é comum nos dias de hoje por conta de lipos, plásticas e malhação. O certo é que o estigma do doente de Aids do passado passou a avançar sobre pessoas notórias, a exemplo do Cazuza, que só faltou se autoimolar cantando, no final já sendo carcomido pela doença – triste desfecho para a carreira de um rapaz da elite carioca, ex-aluno de colégio jesuíta e dono de uma cabeça privilegiada.
Ei, menina, dê uma olhada naquele velho lá na frente, diria hoje alguém para sua vizinha de ônibus Rio-SP. Reparou que ele é idoso, e que por baixo da máscara cirúrgica parece às vezes conter uma tosse reprimida, perguntaria o sujeito já afirmando, sem esperar resposta. Viu que ninguém sentou-se ainda ao lado dele, que ele mesmo procurou isolar-se, insistiu outra vez quem acompanhava uma interlocutora incrédula. Só pode ser Covid, aposto, despejou finalmente de vez o interlocutor atuante, fazendo sua companheira de viagem deslocar-se para um setor mais distante do ônibus.
A cena e monólogo acima – não há um diálogo, e sim uma reafirmação insistente e unilateral – são fictícios, mas poderiam estar acontecendo agora em muitos lugares no país. Há, na carona do embate trazido pela pandemia, o estímulo a uma outra prática, tão perniciosa quanto o discurso imaginário do ônibus: eu vou à praia e à balada, e sem máscara protetora, porque sou macho (ou seu equivalente feminino), porquanto eu não estou doente e me porto assim. Ou ainda diz que defesa e isolamento, distanciamento, vacina, são coisas de fresco. É um tipo de ataque de que os iludidos servos dos arautos de uma falsa liberdade sanitária se servem para se exibir, ao contrário do que parece, em sua autodefesa. Mas no fundo há o medo.
A falsa ilusão dos antivacinas, negativistas e alguns neologismos agregados leva a um outro lado, tão arriscado quanto: estou vacinado, o bicho não me pega (esquecendo-se de que pode infectar os outros, e que sua imunidade tenha se perdido entre os 25% a 61% dos que tiveram sua expectativa de proteção dada por contágio ou vacina contra a cepa anterior, conforme os melhores centros internacionais em recentes notícias sobre o novo e poderoso “vírus brasileiro”).
Vive-se ao som do canto das sereias de cá e de lá. Se no Reino Unido um rigoroso “lockdown” e guerra de vacinação conjuntos decretados por Boris Johnson trouxeram fôlego suficiente para abrir escolas infantis em breve, seguindo seus cientistas, há um aplauso mesmo que disfarçado dos que são politicamente contra o direitista Boris, mas sabem reconhecer seu acerto na condução da luta contra a pandemia. São números públicos, que a imprensa e fiscalização controlam, não há manipulação. O primeiro-ministro sabe que de suas atitudes e seu discurso dependem a aprovação ao seu governo – mesmo que não haja posto mais alto a cobiçar do que manter-se no cargo de premiê britânico.
Usei inicialmente, no caso da Covid-19, a comparação com o início da Aids no país e o preconceito que atacou uma artista da MPB, sob uma ótica diferenciada, e apenas do ponto de vista social e de massas, nunca entre dois vírus absolutamente diversos. São máscaras atribuídas a grupos sociais por outros grupos ou microgrupos, prática que em nada contribui para a derrocada da doença.
Em suma, só há dois lados, no caso da Covid-19: o enorme grupo responsável e equilibrado que pondera sobre seu comportamento social, vacinas e precauções sob a orientação de experts do mundo inteiro, ou a infantil rebeldia, seja que nome for, que não fará o vírus vencer, mas retardará a cura para a maioria e para si mesmo e os seus. Cuide-se, cuide dos outros, vacine-se quando chegar a hora, mantenha os cuidados protocolares mesmo depois de imunizado até que os números indiquem que estamos realmente seguros e seja dado salvo-conduto para voltarmos à vida de antes.