Discussão ou poema em tom satírico e alegórico?

Henrique Autran Dourado

Para discorrer sobre o debate, busquei o étimo de palavras e expressões. Além dos equívocos de que poderia ser vítima, aumenta a compreensão da matéria. Recorri ao basilar, com o etimologista Deonísio da Silva (“De Onde Vêm as Palavras”, ed. Lexicon). Diz ele que “debate”, com o sentido que tem em uma disputa eleitoral, vem do inglês “to debate”. Para o Oxford Dictionary, “uma discussão formal sobre um tema em um encontro público ou Parlamento”. “No debate são alegadas razões a favor e contra determinado tema”, completa Deonísio. E há outra acepção, que pode ser novidade para o leitor como foi para mim: “… poema dialogado, de tom satírico e alegórico, muito em voga na Idade Média”.

O Houaiss cita “débat”, do francês do século 13: “controvérsia, querela”, e entre seis acepções para a palavra destaco uma que serve de forma especial a este caso: “agitar veementemente o corpo e/ou membros (ou qualquer espécie de apêndice locomotor), na tentativa de livrar-se de sujeição física <a mosca debatia-se na teia da aranha>”. Sobre esses dois sentidos nos debruçaremos.

O debate de 29/09 teve de tudo, um pouco do sentido emprestado dos americanos e da alegoria da mosca na teia de aranha – ou, quem sabe, “eu sou a mosca que pousou na sua sopa”, do Raul Seixas. Entretanto, pouco debate se viu, e se alguém tentou, o fez para si, sem interessar a resposta – arte em que é mestre Ciro Gomes. A ironia de Bolsonaro a Lula, chamando-o de ex-presidiário – “indivíduo que cumpre pena em presídio”, segundo o Houaiss –, além de equivocada foi inoportuna. Sem entrar no mérito, Lula não passou 580 dias em um presídio, mas numa sala da Superintendência da PF em Curitiba, condenado em segunda instância no TRF-4 e liberado pelo STF (proibição de prisão imediata após condenação em segunda instância). Inciso LVII do Art. 5º da Carta de 1988: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Não houve trânsito em julgado da condenação em sede de última instância recursal. Poderia ser chamado de “ex-preso”, mas ainda assim ironicamente, em um debate que deveria pretender-se uma disputa cordial entre senhoras e cavalheiros.

Fora intermitentes reprimendas do mediador William Bonner, houve desatinos e bravatas, com Simone Tebet chamando Soraya Thronicke de “Bolsonara”, pedindo logo depois perdão pelo “lapso” – ora, ambas são colegas de anos de Senado e a segunda foi aluna da primeira… Soraya perguntou ao Padre Kelmon: “o senhor não tem medo de ir para o Inferno?” E eis uma dele: “Pessoas sem roupa, uma atrás da outra, com o dedo, né, você sabe aonde…” Soraya criou o mote para os memes mais populares: “porque o senhor é um padre de festa junina”.

Simone prometeu que os jovens que terminassem o ensino médio receberiam um prêmio de cinco mil reais, como se estudar fosse uma gincana premiada. Por sua vez, Lula, atabalhoado, deixou Kelmon invadir-lhe o tempo, e ainda o estimulou indiretamente, atiçando a discussão no seu turno. (Deveria ter deixado o púlpito, o Padre falando sozinho para microfones que seriam desligados).

Enfim, qual o papel que “Padre” Kelmon estaria desempenhando no jogo (a serviço de quem?). Repetiu-se o questionamento sobre seu status clerical (negado em ofício público de 14/09 por Dom Tito Paulo George Hanna, arcebispo da Igreja Sirian Ortodoxa de Antioquia no Brasil). Bonner foi didático: “o senhor sabe que o debate tem regras e que o senhor concordou com elas?” Memes de todos os tipos e espécies tomaram as redes sociais por conta do “padre”. Desde vestimentas de festa junina, passando por montagens de Soraya ao lado de Kelmon junto a uma fogueira tendo como legenda a pergunta sobre o Inferno, um surto de criatividade. Se o debate perdeu em seriedade, a Internet ganhou em deboche e escárnio.

Fico com a segunda definição do Deonísio da Silva: “tom satírico e alegórico, muito em voga na Idade Média”. A sátira seria, na literatura latina, uma espécie de poesia burlesca, cômica, contra instituições e costumes, um gênero que faz alusão à zombaria do coro satírico grego. A alegoria traduz ideias de maneira figurada, cada elemento disfarçando a realidade, mas representando-a. Quesito nos desfiles das escolas de samba, nas fantasias e carros alegóricos, também completa a ideia do termo.

Kelmon foi a estrela da noite. Preparado nos bastidores pelo “filho 02”, tornou-se “conversation piece”: aquele objeto decorativo, geralmente um “kitsch”, que, colocado no centro da mesa, serve para puxar assunto quando chegam visitas do nada. Lula foi presidente duas vezes e era líder em todas as pesquisas (fora duas delas, fake, que invertiam os nomes na “pole”). Bolsonaro é o “runner-up” da corrida, Simone e Soraya são novamente senadoras e Ciro um experiente e eterno postulante que joga sozinho. Kelmon foi um “outsider”, uma sátira de si mesmo. Presente o excesso de regras e candidatos, ausente a disciplina. Que tenha sido uma lição.

Terminado o 1º turno com grande abstenção (32 mi), Lula superou Bolsonaro em menos do que as pesquisas mostravam. Há um novo quadro, com expectativa de debates “olhos nos olhos” entre ambos: Ciro e Tebet tiveram juntos 8,5 mi votos (3,6 e 4,9 mi, respectivamente). Bolsonaro ficou em segundo, abaixo 6,18 mi votos de Lula, e precisa do equivalente a 72,6% dos 8,5 mi de Ciro e Simone (e ambos já declararam apoio a Lula!). Um novo debate promete ser acirrado, porém que seja mais sóbrio, como o momento exige.