Henrique Autran Dourado
Em dezembro de 1920 nascia, de pais judeus, Chaya Pinkhasivna Lispector, na comunidade de Podolia, em Tchetchelnyk, parte do imenso país que hoje é a Ucrânia. A família Pinkhas, Maria Lispector e seus três filhos – dos quais Chaya, ou Clarice, era a mais jovem – passou pelos massacres da guerra civil que aconteceu após a queda do Império Russo, eliminando seus tzares e impondo outro regime de força. Os Lispector haviam logrado fugir para a România e de lá para o Brasil, onde tinham parentes. Saíram do porto de Hamburgo, no norte da Alemanha, e aqui chegaram no início de 1922, quando Clarice nem havia completado dois anos de idade.
Aos 24 anos, em plena Segunda Guerra Mundial, casou-se com o brasileiro Maury Gurgel Valente, e, por força da carreira diplomática do marido, durante 15 anos teve diversas residências na Europa e nos Estados Unidos. Voltou para o Rio de Janeiro em 1959 já separada, madura e experiente, e escreveu “Laços de Família” (1960), uma novela plena de símbolos místicos, “A Paixão Segundo G.H.” (1964), e “Água Viva” (1973), uma obra fenomenal. Fumante inveterada, em 1966 foi vítima de um incêndio após ter caído no sono deitada com seu indefectível cigarro na mão. Passou dois meses internada e sobreviveu por mais dez anos. Benjamin Moser, biógrafo norte-americano, dizia que Clarice era um dos maiores nomes judeus na literatura mundial, após Kafka. Clarice faleceu em 1977 deixando uma vasta obra, objeto de incontáveis traduções, estudos e teses que até hoje brotam com fertilidade, há sempre muito a se descobrir.
Uma cabeça extremamente complexa, diziam. Com todos esses eventos trágicos na vida, desde a fuga da Guerra Civil Russa, o trajeto até chegar ao Brasil, a ida para a Europa com o marido em plena Guerra Mundial e a pecha de judia naquele momento, tudo confluía à linha de leitura frequente dela, de Kafka aos grandes pensadores, desde o Hegel do idealismo absoluto ao Schopenhauer do pessimismo, da metafísica de Kant a Sartre e seu existencialismo.
Temas amargos? Certamente, contraste para os almoços dominicais no apartamento dos Autran Dourado, meus pais, onde Clarice comia e falava, discutia assuntos literários e filosóficos enquanto degustava o prato do dia. Descreve o biógrafo Moser, em trecho que traduzo aqui: “Autran e Lucia Dourado a convidavam para almoçar quase todos os domingos. No final da tarde, sentada no apartamento deles, ela tomava um comprimido para dormir e começava a tirar suas joias para que não caísse dormindo com seus brincos e braceletes. Eles a colocavam em um táxi para mandá-la para casa, onde às vezes ela chegava dormindo” (MOSER, Benjamin. “Why this world”. NY: Penguin books, 2009).
Infelizmente, eu era muito novo e não tinha ideia de quem era aquela senhora. Eu queria molecar, o que era natural, não imaginava quem ela poderia ser, como resumiu Moser: “em meados dos anos 1970, a reputação de Clarice era a de um gênio excêntrico, meio que destoando da sociedade, que havia crescido em lendárias proporções”. Eu e minhas brincadeiras, os adultos na sala divagando entre Schopenhauer e Kafka, por quem ela tinha uma verdadeira obsessão. Em outro trecho de sua biografia, Moser cita: “Autran Dourado, um dos principais novelistas e intelectuais do Brasil, lembra-se de longos domingos passados com Clarice em complicadas discussões filosóficas que iam de Spinoza a Nietzsche”. Carga pesada.
Um dos 20 quadros que Clarice pintou na vida foi dedicado aos meus pais, anfitriões dominicais de repastos e colóquios de Clarice, obra que nós, herdeiros, decidimos por acordo vender e hoje está nas mãos da escritora Nélida Piñon. Outra grande amizade da escritora foi Lúcio Cardoso, que, vítima de um AVC, ficou incapacitado para escrever – mas não para pintar seus quadros, o que fazia manobrando pinceis e tintas entre os dedos dos pés (aquilo me assustou quando, pequeno, uma vez fui com meu pai visitá-lo). Lucio e Clarice mantinham uma verdadeira paixão, embora platônica: ele foi um dos primeiros artistas a assumir sua homossexualidade naquele tempo.
Em 2022, Clarice completaria 102 anos. Foi uma vida entre os “pogroms” na Guerra Civil Russa, o terror stalinista na terra que deixara, sua mudança para a Europa em plena Segunda Guerra levando o carma da herança judaica, a angústia de escritora após o golpe de 1964… O que seria dela agora, diante da invasão russa à Ucrânia? “Esse traço de desespero que Clarice Lispector revela é comum nos escritores contemporâneos. Mas assume para nossa escritora um caráter trágico, porque Clarice Lispector é escritora mulher e porque está diante de sua própria morte” (GUIDIN, M. Lígia. “Roteiro de leitura – A hora da estrela”. SP: Ed. Ática, n/d). Ouçamos sobre outras Clarices: “Que mistério tem Clarice / pra guardar-se assim tão firme / no Coração”, de Capinam e Caetano (1968), e “choram Marias e Clarices” (1989), lindo poema de Aldir Blanc que fala da viúva de Vladimir Herzog, assassinado em uma cela do Dops.
Schopenhauer talvez não seja pensamento para nos emaranharmos neste momento, Clarice. Nossas reflexões têm de ser pragmáticas, um dia após cada dia, assombrados diante de uma pandemia devastadora, o barril de petróleo acima de 100 USD que vai catapultar a inflação no mundo com a fome e o desemprego que crescerão deste flagelo. A tua hora vive em nós, Clarice. Mas o líder que hoje poderíamos te dar sinaliza aos invasores e não os repudia: tenta-se dizer neutro, pelos “nossos” interesses.