Henrique Autran Dourado
São muitas as canções de guerra, das que falam dela até, creia, as que lhes tecem loas. Sobre essas últimas, vem-me logo à cabeça “Bandiera Rossa”, cantada pelos radicais comunistas italianos: “Avante, povo, façamos greve / viva Stálin, viva Krushev”. A melodia lembra canções da Lombardia e a letra, de Carlo Tuzzi, tem o espírito da Rússia pré-revolucionária. Os radicais e anarquistas estavam impregnados por ideias que soçobravam o mundo, certo comunismo redentor, que levaria os trabalhadores ao Paraíso. Com direito a blasfêmias: “à meia-noite, céu estrelado / o Santo Padre estará enforcado”.
A “Marseillaise”, composta por Rouget de Lisle (1792), após as lutas que culminaram com a queda da Bastilha (1789), era um grito de guerra, conclamando – assim como os radicais italianos viriam a fazer muito depois com “Bandiera Rossa” – à guerra e à vitória. Canta a “Marseillaise: “Avante, filhos da Pátria / o dia da glória chegou” – não sem expor certa gana: “a bandeira ensanguentada está erguida (…) Que o sangue impuro banhe nossos campos (…) que teus inimigos, agonizantes, vejam teu triunfo e tua glória”. Canção revolucionária, foi banida durante o império de Napoleão, mas depois tornou-se – até hoje – o Hino Nacional francês, mas com apenas duas estrofes e dois refrões (a letra original é longuíssima).
Do pacifista John Lennon é uma linda música de Natal, “Happy Xmas – The War is Over” (“Feliz Natal, a guerra acabou”): “Um Natal muito feliz / e um alegre ano novo / esperemos que seja um bom ano / sem medo algum”. Entremeando a alegria do Natal – o chamado “Christmas spirit” -, mensagens de esperança por um futuro sem guerras, pleno de paz. A canção de Lennon foi escrita em 1971, sobre um slogan antiguerra de Phil Ochs, de 1968. Sonhava com a paz no Vietnã, uma guerra que já durava 16 anos e chegaria aos 20, carma do mundo jovem naqueles tempos, seu canto de amor. São de Lennon igualmente “Imagine” e “Give Peace a Chance”; também cantaram a paz Patti Smith (“People Have the Power”), Bruce Springsteen (“Land of Hope and Dreams”), Michael Jackson (“Heal the World”), Lenny Kravitz (“We Want Peace”) e muitos outros. Com o fim da Guerra do Vietnam, já se vivia nos EUA uma nova era, a de Woodstock.
Caetano Veloso fez uma deliciosa salada latino-americana em “Soy Loco por Ti, América”: “Espero o amanhã que cante / el nombre del hombre muerto / (…) Um poema ainda existe / com palmeiras, com trincheiras / canções de guerra, canções do mar / ay hasta te comover”. Tempos difíceis no Brasil! Não se sabe de que guerra o compositor falava, se era de alguma em particular, do regime político, luta entre palmeiras e trincheiras. O também tropicalista piauiense Torquato Neto também usou essa dicotomia de Caetano em “Marginália II”, poema musicado por Gilberto Gil: “A bomba explode lá fora / e agora, o que vou temer? / Oh, yes, nós temos banana / até pra dar e vender”. Bastavam-nos bananas e, sim, longe da bomba, “pero no mucho”, diria um possível verso do Caetano, ou “longe daqui, aqui mesmo”, o dramaturgo Antonio Bivar.
“Canto Latino”, letra do cineasta Ruy Guerra musicada por Milton Nascimento, tem um lado mais agressivo. Afinal, Ruy é moçambicano, conheceu a guerrilha contra as terríveis ditaduras africanas: “Nasci com a minha morte / dela não vou abrir mão / (…) Quando a morte é vivida / e o corpo vira semente / de outra vida aguerrida / que morre mais lá na frente”. E segue, cáustico: “A primavera que espero / (…) Só brota em ponta de cano / em brilho de punhal puro / Brota em guerra e maravilha / na hora, dia e futuro / da espera virar…” (Aqui era para se cantar “guerrilha”, palavra omitida com prudência).
Cantando os males do mundo, Barry McGuire, de voz rouca e rasgada, tinha um apelo mais plangente, um retrato inominável do momento, “Eve of Destruction” (“Véspera da destruição”): “O mundo ocidental está explodindo / violência em chamas, corpos flutuando / (…) Você não compreende o que tento dizer? / Você não pode sentir o medo que sinto hoje? / Se o botão for pressionado / não haverá como fugir”. E divide o foco: “Pense em todo o ódio que há na China vermelha / então dê uma olhada para Selma, Alabama”. No estado de Alabama, o governador de extrema direita George Wallace defendia a segregação racial nos bastidores dos violentos conflitos, uma verdadeira guerra baseada no lema de sua posse: “segregação agora, segregação amanhã, segregação para sempre”. Mesmo com o Ato dos Direitos Civis aprovado pelo presidente Lyndon Johnson em 1964, é difícil fazer cumprir a lei. Fora do belo preâmbulo, discrimina-se, fere-se e mata-se negros até hoje.
Que canção serviria ao presente? Cada guerra tem uma história, um rastro de sangue, de destruição. Tem personalidade própria desde seus obscuros motivos – o sangue de quem as promove está cego pelo ódio. Sem canções, somente apelos, súplicas, a tristeza de ver crianças separadas de suas famílias, os olhos marejados e perdidos na destruição.
Temos hoje meios diferentes de protestar, os artistas já não se manifestam como a voz do povo. Resta o silêncio: calarmo-nos por medo, voltarmo-nos para nosso próprio interior ou morrer – o que, filosoficamente, arrisco, não se vislumbra senão na mesma coisa: o silêncio. Cabe aqui a bela “Sons do Silêncio”, de Paul Simon, e lembrar Beethoven, tomado pela surdez: “O som é prata, o silêncio é ouro”. Nem que seja por um minuto, um longo minuto por tantas vítimas.