A cultura? ora, a cultura…

Henrique Autran Dourado

Escolher o responsável por cada área em âmbito de governo, municipal, estadual ou federal, demanda, além de natural afinidade política, a exigência de uma série de qualidades. Não se obriga que seja alguém que milite na área, um bom administrador com nível à altura do cargo pode trazer bons resultados. Basta ver a lista da Cultura, estreada pelo jornalista José Aparecido de Oliveira (1985), nos tempos de Sarney, a que seguiram mais três ministros, retornando ao mesmo José Aparecido em 1988, gestão concluída com a posse de Collor, em 1990. Com este último, assume o teatrólogo Ipojuca Pontes, que após um ano cede o lugar para Sérgio Paulo Rouanet (1991), com um currículo para ninguém botar defeito: antropólogo, diplomata, professor, mestre em ciência política, filosofia, economia e agronomia pela USP, onde doutorou-se em medicina e ciência política, além de ter sido membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), cuja nomeação seguramente não está entre os erros de Collor. Rouanet idealizou a lei de incentivos fiscais, que terminou batizada com seu nome. E quando se fala em democratização da Cultura, com certeza fala-se na lei por ele gestada. (Bom ressaltar que foi na gestão Collor que o Ministério da Cultura foi extinto, passando os titulares da pasta a serem empossados como secretários de cultura).

Com Itamar Franco, destacou-se o filólogo Antonio Houaiss (1993), e durante toda a gestão de Fernando Henrique Cardoso, de 1995 a 2002, outro grande nome: Francisco Weffort, escritor, cientista político e acadêmico. Em 2003 tomou posse Lula, que nomeou o cantor Gilberto Gil para a Cultura, a que seguiram Juca Ferreira e a produtora Ana de Hollanda, em uma gestão controversa. Não dá para discorrer sobre esses 21 ministros, mas salta aos olhos ter sido nas gestões Collor e Bolsonaro que a pasta foi extinta, relegada a um espaço de somenos importância. Com Bolsonaro ocuparam funções decorativas os secretários Henrique Pires, José Paulo Martins, Ricardo Braga e, finalmente, o polêmico Roberto Alvim, que em 2019 assume a secretaria no lugar da atriz Regina Duarte, secretária-tampão de um total de nada menos do que sete titulares e bastante confusão: Alvim clonou um discurso do ex-ministro da propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, causando enorme transtorno até ser exonerado em janeiro de 2020, sob imensa pressão.

Em dezembro de 2022, Lula anuncia o ressurgimento do Ministério da Cultura e o nome de Margareth Menezes para titular da pasta. Para os que, como eu, a conhecem quase que só de nome e pouco de música, a decisão trata de um conjunto de fatores que visam a contemplar segmentos que pleiteiam espaço no governo: cantora, atriz, negra, mulher, pessoa atuante no meio. Indicada a dois Grammys e premiada algumas vezes, recebeu do jornal Los Angeles Times o epíteto de “Aretha Franklin brasileira”. Procurei ouvir mais algumas músicas, para formar convicção, e encontrei muita influência afro, via Bahia, mas fora do clichê de sempre, o inefável axé-music. Parece uma afrodescendência legítima, soteropolitana de raiz, que Margareth sabe representar junto aos grupos que organiza e lidera. Falta conferir a capacidade de organização, de liderança, ideias; falta ainda desvencilhar-se de acusações – algumas plausíveis e outras visivelmente maldosas ou para “fazer marola”. Pergunto: será que todos os 21 antecessores no cargo teriam passado por tal crivo? É aguardar e ver.

A cultura europeia é lastreada no poder público – ou melhor, em dinheiros públicos –, que sustenta a estrutura de imensa parte das melhores orquestras, teatros e museus. Costume arraigado desde os tempos em que príncipes, condes e imperadores, além de igrejas, organizavam o ensino e a prática (no caso, mais especificamente musical), desde Bach, Haydn, Mozart. Na Europa, o subsídio oficial é tão importante que em geral representa quase 100% do orçamento das grandes orquestras e teatros. É parte da vida, até as menores cidades costumam ter suas casas de ópera, museus, estimulam o conhecimento do passado e do presente.

Nos EUA, a cultura é usufruída pelos cidadãos por meio de ingressos ou pelo preço do objeto de arte e ponto. Para não dizer que não há apoio algum, cito o NEA (National Endowment for the Arts), parte da National Foundation for the Arts e outras agências. Entre 1965 e 2008, o NEA pagou 128 mil auxílios, mais de 5 bilhões de dólares – o que significa 39 mil USD cada no período de 43 anos – ou seja, um valor absolutamente irrisório. Mas trata-se de um país em que mecenas particulares da arte são “donors”, “patrons”, “sponsors”, “trustees” e afins – classes de doadores, conforme as cifras, para as mais diversas organizações. É uma nação onde se paga caro por um ingresso, e além disso tudo ainda há doadores como Mary Curtis, que em 1924 ofereceu três prédios mais USD 12 mi (200 milhões hoje, ou ainda R$ 1,04 bilhão) para o início do afamado Curtis Institute of Music da Philadelphia, só para citar um exemplo.

O Brasil é um país bem mais pobre, em que a mídia dissemina uma cultura de segunda ou terceira; é preciso suporte e subvenção oficiais, seja por incentivo fiscal ou outro, para que o povo em geral tenha acesso ao que há de melhor. Cultura é o alimento do espírito, a fábrica do que Mário de Andrade chamava de “biscoito fino”, a que todos têm direito, é um bem comum que engloba das nossas raízes ao conhecimento universal. Esperemos que desta vez haja sorte na reconstrução, para adiante prosseguirmos e vencermos.