Henrique Autran Dourado
Johann Sebastian Bach (1685-1750), talvez o maior músico de todos os tempos, foi educado na mesma escola de Lutero, em Eisenach, dois séculos depois. Criou vasta obra instrumental, como as partitas e suítes para violino, violoncelo ou cravo, sonatas, concertos para solistas e muitas peças orquestrais. Dedicou sua obra a Deus, e escreveu 3 oratórios, 7 corais vocais-instrumentais, 2 enormes Paixões, 5 motetes, 190 cantatas, salmos e 371 corais a quatro vozes. Reservava boa parte do seu tempo de compositor e mestre de capela para glorificar o Senhor, mas sem nunca deixar de dedicar-se à sua cada vez mais rica obra instrumental. É certo que essa louvação compreendia tudo o que se podia fazer com a arte dos sons, mas com pureza e obsessão pelo “gradus ad Parnassum”, a busca pelo Paraíso, a perfeição.
Música e Deus, ou, em sentido mais terreno, religião, qualquer que ela seja, podem caminhar de mãos dadas, em comum elevação de fé e espírito. Porém, não é raro que certas Igrejas, especialmente as que meu pai chamaria de seitas menores, tendam a ideologizar e, como acontece frequentemente nos dias de hoje, politizar, instrumentalizando a música como ferramenta de governo ou, conforme veremos mais à frente, justificativa para censura discricionária.
Em 30 anos como diretor de escolas de música (como a do Teatro Municipal de São Paulo e o Conservatório de Tatuí) não tive problemas de maior monta ou conflitos de ordem musical-religiosa, exceto por uma ou outra vez algum aluno ingressante da EMM, em cujo nome só os pais falavam durante visita à minha sala. Explicavam que a filha (ou filho) não poderia frequentar a escola aos sábados por motivos religiosos, evocando para isso até milenares textos bíblicos como a criação do mundo e o Êxodo. O que me cabia perguntar era como ficariam as presenças em aulas e ensaios, as notas de provas, e como justificá-las sem perder a isonomia com os colegas. Mais ainda, dizia, em sentido estrito: a escola, por lei de 1969, fora criada para formar músicos profissionais e não diletantes. E que eu poderia ajudá-los na busca de uma comunidade onde encontrar uma formação mais básica, livre das amarras profissionalizantes da EMM. Matriculado mas sem abrir mão de faltar, logo o aluno era eliminado. Ou desistia, sentindo-se um estranho no ninho.
Geralmente era o pai quem forçava o estudo musical, e o aluno começava a perder o gosto pela coisa, se é que já havia sentido algum. Houve caso em que um aluno me disse que queria tocar “apenas” para servir a Deus, ante o que arregalei meus olhos e instiguei: como assim, “apenas” a Deus? Você não acha que Deus merece o que há de melhor, que em sua fé, para alcançá-lo em sua louvação, deve buscar o melhor de si, muito mais ainda do que os profissionais? Deus merece tão pouco? Por que não oferecer o melhor ao Senhor?
Em Tatuí, em dez anos nunca tive problemas dessa ordem, talvez por se tratar de cidade cristã em sua maioria mais do que absoluta, de diversas igrejas e matizes; talvez porque a convivência entre fé e música venha desde as origens, do improviso do cururu (de “cururuz”, corruptela de cruz), nascido nas catequeses; talvez porque o Conservatório, tão arraigado na vida urbana – “Capital da Música” que é, por lei estadual –, faça parte do dia a dia e do comércio, e nas ruas jovens com seus instrumentos sinalizem essa verdadeira comunhão artístico-espiritual. Um número considerável de alunos e ex-alunos profissionais dividem ou dividiram os bancos escolares com aqueles das igrejas.
Sinal dos novos piores tempos, no dia 12 de julho o UOL publica matéria do Congresso em Foco com o título “Ao barrar verba para festival, Funarte diz que música só deve servir a Deus”. Com um parecer abaixo da crítica, a Fundação negou a verba pleiteada para um festival de jazz na Chapada Diamantina (BA), fazendo ilações sobre “aplicação errada” de recursos públicos. A nota, que se autodenomina “técnica”, informa que a música deve servir a Deus, não devendo contemplar, portanto, o jazz do Capão. O relator do processo, um certo Ronaldo Gomes, cita o compositor e mestre de capela alemão Johann Sebastian Bach. Supostamente, “o objetivo e a finalidade maior de toda música não deveria ser nenhum outro além da glória de Deus e a renovação da alma”. Ninguém menos do que o velho Bach, ele mesmo autor de um universo de obras instrumentais, logo profanas, ao lado de sua vasta produção composta como empregado de capela (“Kapellmeister”) para fins litúrgicos!
Pior de tudo, no mesmo documento o “parecerista” cita outra frase, desta vez evocando Schopenhauer: “A música exprime a mais alta filosofia em uma linguagem que a razão não compreende” – muito lindo, mas sem ter lido o pensador alemão ou mesmo sem saber que ele trata da filosofia do pessimismo? E ainda mais longe, ao âmago da questão: segundo a metafísica de um ateu? Além da absurda censura a um festival por motivos nada técnicos, fez-se tábula rasa tanto do espírito de Bach quanto da própria filosofia ao citar Schopenhauer.
Criada em 1975 exatamente para o amparo às artes, e não sua censura, estiveram no comando da Funarte nomes de reconhecida expressão na cultura brasileira, como Ziraldo, Edino Krieger, Ferreira Gullar e Miguel Proença, todos de grande peso em suas áreas. Hoje, tem à frente um certo Sr. Tamoio Marcondes, procurador federal e peixe absolutamente fora d’água, o sexto a ocupar cargo tão volátil na atual gestão.
Que o Senhor tenha piedade da música!