VIAGEM MUSICAL





VIAGEM MUSICAL
Entrevista com o Sivuca, em 24 de maio de 1986 (30 anos atrás).

Por Voss

“Ói nóis aqui traveis!”

Bem, aí, pessoal, o Ivanzinho me pediu que escrevesse um texto para este espaço do jornal, no lugar de Jorge Rizek, em férias. E, pela urgência do tempo, encontrei este texto que, agora, quem leu vai relembrar, e quem não leu vai ler, e espero que goste!

Esta entrevista tem uma história, e como eu gosto de histórias que colocam Tatuí no centro como um grande coração, ela nasceu assim:

Nessa época, eu era locutor e apresentador do programa “Salada Mista”, que era “levado ao ar” de segunda a sexta-feira, das 13h às 16h, pela Rádio Notícias de Tatuí AM.

Eu cantei em muitos Carnavais, com a banda New Sound Six, de Cesário Lange, dirigida pelo Og Vasconcelos, e também com a Sal da Terra, que era dirigida pelo amigo, músico cerquilhense e compadre Carlos Alberto Gaiotto, o “Xyro”. Ele, inclusive, fundou a banda Makros, que animou muitos bailes na nossa cidade e região e embalou muitos casais e amores.

Como Xyro tinha muitos equipamentos de som e possuía um imóvel no centro de Cerquilho, ele me convidou para produzir eventos com ele e sua esposa Cristina. Assim, acabou fundando a danceteria Chaplin.

O primeiro evento aconteceu no auge da novela global “Roque Santeiro”, que tinha o casal Porcina (Regina Duarte) e Sinhozinho Malta (Lima Duarte), que era sucesso, e o Brasil assistia de ponta a ponta (30 anos atrás).

Nessa novela, o carro dela era um MP Lafer, e, como nós tínhamos um, lá fomos nós, eu e minha esposa Fátima, desfilar pelas ruas da cidade, transfigurados nos personagens – inclusive, com direito a chapéu de caubói como ele usava. Sentiu o clima?

Foi sucesso, e, em seguida, me convidou para produzir um show com o Sivuca, que estava voltando ao Brasil depois de um grande sucesso no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça.

De rádio gravador e microfone pela mão, lá fomos nós – e como não podíamos deixar passar em branco – na casa do Xyro gravar essas perguntas que foram transcritas para este jornal naquela época. E, para não perder a originalidade, não mudei nenhuma vírgula. Talvez, possa soar meio estranho, mas assim foi feito e assim ficará.

Agradeço ao meu amigo fotógrafo Ademar Machado e ao Jaime Pinheiro, que pintou uma camiseta com o nome “Tatuí” em meio a um monte de notas musicais e entregou de presente para o Sivuca.

Embarque nessa viagem musical, e até outra próxima história. Abraços a todos, do “The Voss Tatuí”, para imitar o “The Voice Brasil”, ou “tio Voss Brasil”, como me chama minha sobrinha Lu.


“Salada Mista” orgulhosamente apresenta:

“Tatuí, lugar onde planta-se cana e colhe-se bemóis e sustenidos”

Entrevista feita pelo locutor da “Salada Mista” – Rádio Notícias de Tatuí – Voss, no dia 24 de maio de 1986, em show em Cerquilho:

1) Por que Sivuca? É nome de guerra? Como surgiu?

SIVUCA – Surgiu devido que já naquela época, em meios de comunicação, já terem limitações de tempo, e meu nome ser muito comprido (Severino Dias de Oliveira), o diretor da Rádio onde eu trabalhava resolveu diminuir e assim nasceu – Sivuca.

2) A música veio como herança de família? Ou somente você teve jeito pra coisa?

SIVUCA – Não, na minha família não temos músicos. Tive alguns primos que tocavam, mas de forma amadora. Sou filho de camponeses, e nasci em Itabaiana, na Paraíba.

3) Qual foi o primeiro instrumento que você ouviu e ficou assim, empolgado?

SIVUCA – Bem, o primeiro instrumento que eu ouvi foi sanfona, isso num sítio, numa festa de casamento, em 1936. Quando eu ouvi, fiquei maluco e naquele instante comecei a vibrar com todos os estilos de música, porém, naquele sertão agreste a sanfona era o único instrumento que eu tinha à mão.

4) Você teve algum mestre no início ou foi tudo “de ouvido e no sangue”?

SIVUCA – Foi tudo no sangue, e tive incentivo meramente visual. Havia um tal de José Alexandre que tocava, eu fui vendo e memorizando o repertório, e quando eu vi já tocava tudo que ele tocava.

5) Você estudou música em alguma escola ou foi aprendendo com o passar do tempo?

SIVUCA – Não, eu estudei música, sou músico. Quando eu morei em Recife, tive aulas com o maestro Guerra-Peixe e, durante os ensaios, eu pedia aos músicos informações. Porém, foi Guerra que me ensinou harmonia, contraponto e outro lado da música que eu não conhecia.

Conhecia a prática e, depois, a teoria. Foram três anos de aulas, ensaios, estudos, e foi ele quem verdadeiramente abriu as portas da música e responsabilizo-o totalmente pelo que sou hoje, musicalmente.

6) No tempo da bossa nova você tocava com quem? Morava onde?

SIVUCA – Nesse tempo, eu morava em Paris e o diretor da gravadora que eu trabalhava, a Maison Barclay, disse-me que, em matéria da nova concepção musical, houvera uma parada e que agora nós temos que pensar em música antes ou depois da bossa nova.

Esse movimento teve grande influência lá fora, e eu vim a conhecer o nascimento da bossa nova, pois eu era um grande amigo de Antonio Carlos Jobim, João Gilberto, Johnny Alf e outros da noite de Copacabana, pois até 1958 eu morava no Rio de Janeiro.

7) E a tropicália teve a ver com você ou você passou de longe?

SIVUCA – Bem, nessa época eu morava longe do Brasil. Voltei em março de 1964. Porém, como as coisas estavam meio quentes eu voltei para os EUA e lá fiquei 13 anos. Assim, não deu para sacar muita coisa.

8) Às vezes, os seus be-bops e falsetes lembram-nos o som de Hermeto Pascoal. Entre vocês dois houve uma troca de influências?

SIVUCA – Hermeto, como eu, é nordestino de Alagoas, tocava sanfona na mesma rádio que eu e é lógico que houve uma troca de informações musicais. Tocamos juntos nas orquestras e shows com artistas da época e, se não tivéssemos nada em comum, temos o fato de sermos albinos, nordestinos e sanfoneiros.

9) Você recebeu influências de Gonzagão ou o legendário Luiz Gonzaga?

SIVUCA – Recebi, e grande, pois Gonzagão, ele nem faz parte do contexto da música nordestina. Ele é o contexto e eu ouço desde 1944, é o iniciante, o propulsor pra que tudo chegasse aonde chegou.

Eu guardei o forró na minha cabeça como se guarda uma joia. Naquela época, a palavra forró era considerada uma obscenidade e hoje é gênero musical, e de muita importância para a MPB.

10) No jazz, o acordeonista Art Van Damme deu-lhe alguma base para a música free?

SIVUCA – Sim, deu. Pois, inclusive, chegamos a gravar juntos nos anos 60, e tocamos em shows de jazz em Nova York. E o homem é uma fera nos teclados. No estilo de jazz, ele é considerado o melhor do mundo.

11) Quando ouvimos o Oswaldinho, sentimos nele um discípulo seu. Houve algum contato entre vocês?

SIVUCA – Sim, pois o Oswaldinho é filho do Pedro Sertanejo, um grande amigo desde os anos 1955/56, na Rádio Tamoyo, ele levava o garoto em todos os forrós da região. Porém, para o Oswaldinho, a grande influência vem do Dominguinhos.

12) Na área internacional, com quem você gravou?

SIVUCA – Eu gravei com Miriam Makeba (Pata Pata), em 1962, e com o cantor negro Harry Belafonte e outros.

13) Sivuca, como é que os gringos recebem a MPB tocada com sintetizadores e teclados na área do jazz, a exemplo do Festival de Montreux, na Suíça?

SIVUCA – Olha, meu amigo, recebem com grande energia e vibração, e a música instrumental é melhor aceita lá do que aqui, pois, para você sentir, iremos para a Suíça e Suécia para tocarmos em escolas de música, daremos cursos. Isso tudo pago pelo governo de lá. São outras cabeças pensantes, uma coisa mais pra cima, mais ágil, mais cultural. Você entende, não é mesmo?

14) Sivuca, em cada novo LP que você grava sentimos uma constante mudança sem perder as linhas gerais. Como é que você consegue isso?

SIVUCA – Eu nasci aqui no Brasil e não posso perder a minha identidade musical adquirida aqui, pois ela nos penetra no sangue e fica, por mais que você tente fugir (não é o meu caso). Você volta e tudo começa novamente.

15) Sentimos que o Rio de Janeiro é o berço das feras da música. Há alguma diferença entre músicos do Rio e de São Paulo?

SIVUCA – Não, não há. Os dois são muito bons. Infelizmente, São Paulo tem menor penetração nos movimentos musicais. É bom trabalhar-se em São Paulo, porém, cria-se mais no Rio.

16) Tatuí é o berço do tecladista do grupo Azimuth – José Roberto Bertrami – e do baixista Cláudio. Você teve o prazer de tocar com eles?

SIVUCA – Sim, tocamos muito tempo juntos, em uns LPs de Chico Anísio, e logo que eu cheguei dos “States”, foi o Zé Roberto que me deu muita força no Rio. O LP da Glorinha Gadelha foi gravado totalmente com o Cláudio Bertrami (irmão do José Roberto, um excelente músico que tocou no Grupo Medusa).

Daí é que eu tirei a minha definição de Tatuí: “é o lugar onde planta-se cana e colhe-se bemóis e sustenidos”. É onde o pessoal vive a democracia musicista.

Parabéns pelos frutos musicais que Tatuí já mandou para o cenário musical brasileiro. Dá um abraço para todo mundo que toca ou canta: sertanejos, eruditos, seresteiros, jazzistas, roqueiros e todo mundo de lá.

17) Sivuca, deixe aqui alguma mensagem para os ouvintes e leitores deste jornal:

SIVUCA – É que a juventude não se esqueça que, bem ou mal, nós nascemos no Brasil e que, se o país passa hoje por momentos difíceis, tudo bem. Agora, o que não se pode permitir é essa demanda cultural, essa americanização em massa, essa perda de identidade cultural. Nós engolimos tudo que nos despejam nas TVs, enlatados, crianças atrás do “He-Man”, de tantas outras bobagens que custam-nos milhões por minuto, enquanto que os músicos morrem à míngua.

Precisamos acordar enquanto é tempo, pois, senão, será o caos e somente a máquina será a dominadora em todos os setores. Veja as novas gravações com baterias eletrônicas, orquestras eletrônicas, tudo que vem de fora, de um país dominador por natureza.

O Brasil não pode, de forma alguma, perder a sua identidade cultural, em todos os gêneros.

Outro recado é para os músicos, que, antes de sair por aí massacrando os ouvidos de todos, estudem música e sejam conscientes. Chega de enganação. Isso está cheio por aí. Querendo ou não, a “peneira”, a seleção dos melhores sempre vai existir.

Estude música. Não é só aprender ao pé da letra, ela penetra em nosso sangue, na nossa pele. Os que estudam devem estudar pelo menos de quatro a cinco horas por dia, pois é válido o ditado: “Quanto mais se sabe, menos se sabe”.

De nada adianta você estudar 11 horas num dia e noutro nem olhar para o instrumento, pois a natureza do corpo cobra. E, de repente, vem a fadiga, a ressaca, e tudo volta ao início.

E, para encerrar, quero agradecer as suas perguntas, o bate-papo gostoso, a camiseta, pintada pelo Jaime, à Rádio Notícias de Tatuí, aos amigos dos jornais, e espero um dia poder estar em Tatuí, tocando para músicos dessa terra musical e cheia de vida. Obrigado!

(No final do show, eu conversei com o Jaime Pinheiro, o artista plástico tatuiano, e ele definiu-me assim: “Olha, eu vi um coração pulsando dentro da sanfona do Sivuca, nas cores verde-amarela, um p… exemplo de Brasil. Foi arrepiante. Obrigado”.)

Voss 86/87.