Henrique Autran Dourado
Do latim clássico, a frase teria sido proferida por Júlio César ao fim da batalha de Zela, em 47 a.C., como uma mensagem do Imperador ao Senado de Roma para festejar a vitória. Em português, “Vim, vi, venci”. A frase tornou-se famosa a ponto de ressurgir em outros momentos da história, com algumas variações – ao fim da Batalha de Viena, no século 17, João III, rei da Polônia, teria bradado “Venimus, vidimus, dio vicit”: “Viemos, vimos, Deus venceu”. Do nome italiano Vinicius, dim. de “vinius”, “vinnilus” – “que tem voz agradável” – surgiu também Vinício, popular entre nós.
Vinícius José Paixão de Oliveira Júnior, nome que por necessidade de espaço foi “encolhido” para Vini Jr., nasceu pobre em São Gonçalo, RJ, em 12/07/2000. É um rapaz de 23 anos incompletos que aos 16 entrou para a história, vendido pelo Flamengo carioca para o Real Madrid por 45 milhões de euros – R$ 240 milhões, a segunda maior soma paga por um jogador brasileiro, ficando atrás apenas de Neymar. Jovem, bamba e já dono de uma pequena fortuna, Vini só poderia esperar sucesso e desfrutar dos louros da fama. Novo, forte, artilheiro temido nos campos, Vini teve construída de repente ao seu redor outro tipo de barreira, uma muralha, digamos, de racismo, inveja, xenofobia, sentimentos que têm sido cultivados mundo afora em ciclos históricos, germinados com racismo e despeito e de mãos dadas com a inveja. Um garoto virtuoso a bordo do sucesso e da glória provocou o que há de pior, como Caim contra seu irmão Abel: o ódio, que além de envolver tudo isso pode muito mais.
Em Valencia, Espanha, os sonhos de Vini tornaram-se agora enormes pesadelos. Há as inevitáveis comparações entre o racismo espanhol e o “estrutural” brasileiro, coisa sem sentido, já que em todos os lugares do mundo o preconceito está presente em suas diversas formas. Neste momento, muitos já culpam a vilania espanhola na questão do preconceito racial, pois estamos em um momento em que o ódio explode aos gritos de “morra, Vini!” em pleno jogo, arrancando lágrimas de muitos – e do próprio jogador em campo. Para “salvá-lo” da histeria dizem que o melhor seria ele deixar o Valencia, LaLiga, a Espanha, supostamente para proteger-se da turba ensandecida teleguiada por líderes mais radicais. Durante quase 40 anos, a ditadura espanhola de Franco, ao lado das de Mussolini, na Itália, Hitler, na Alemanha, e Salazar, em Portugal, foi radical exemplo de ódio e racismo. Talvez sobra do veneno dos monstros do “Guernica”, de Picasso, genial pintor espanhol.
Júlio Gomes, do UOL (23/05), acha que um país que recebera Vini tão bem não teria o germe do ódio despertado assim sem mais. E muitos teriam visto um começo: setembro de 2022, em um programa de TV, “desses de baixo nível, como temos vários aqui”: “um idiota racista fala no ar que o jogador precisava respeitar os rivais, parar com as dancinhas após fazer gols e deixar de ‘fazer macaquices’”. Naquela mesma semana, torcedores do Atlético de Madri, do lado de fora do estádio, imitavam macacos; faixas com mensagens hostis engrossaram o caldo do ódio, bonecos com o uniforme do Vini foram pendurados em uma ponte, e outro surgiu qual em uma forca, simbolizando uma ação ainda mais cruel.
No Brasil, em discurso infeliz, um senador da República, Magno Malta (PL-ES), criticou a repercussão do assunto na imprensa durante a reunião da CAE (Comissão de Assuntos Econômicos) do dia 23/05: “Cadê os defensores da causa animal que não defendem o macaco?” E que tudo seria uma “revitimização” de Vini Jr. Qual o limite da imunidade parlamentar no Brasil? Um homem que se diz fundamentalista religioso, pastor evangélico e cantor? (Aliás, esta última “qualidade” não conhecia. Ele estava, sabe-se lá o porquê, em uma reunião da Frente Parlamentar pela Inclusão da Música no Ensino Escolar, de que cuja mesa de debates participei na Alesp há uns 20 anos. Por ser “cantor”? Não que eu saiba.
Após esses episódios e suas repercussões, natural que as posições se exacerbassem. A extrema direita no mundo traz de carona a xenofobia e o racismo, e o partido de extrema direita espanhol – hoje todos temos os “nossos” – chama-se VOX (do latim “voz”). Javier Tebas, presidente da LaLiga, notório racista e militante, ouviu de Vini “quero ações e punições, hashtag não me comove” (O Globo, 22/05, Esportes). Cabe a nós todos lutarmos juntos contra o ódio racial: os piores momentos da história o tiveram como combustível da raiva a movê-los. Segundo o IBGE, 55,8% da população brasileira é considerada negra. É verdade que a porcentagem de apresentadores de TV, jornalistas, professores universitários e economistas de pele escura e preta cresceu também, logo, sábio será lutar pela inclusão e combatermos juntos toda e qualquer discriminação.
O menino Vinicius, de São Gonçalo, pode jogar em qualquer país do mundo, mas isso não deveria engrossar as fileiras dos que o querem longe da Espanha, “para protegê-lo”. Vini deve ter a mesma liberdade e autonomia de qualquer craque, já que talento lhe sobra. E o mundo tem a chance de aprender com ele, pois já há quem o eleja como um segundo marco na luta contra o racismo neste século, após George Floyd, assassinado por policiais em Minneapolis, EUA, sob sufocantes “I can’t breathe” (eu não posso respirar).
Ao ouvir o nome de Vini pela primeira vez, lembrei-me daquela frase, daquele brado de Júlio César em 47 a.C. Hoje, não por acaso, dei título a este artigo em homenagem a ele, Vini, para que brade para todos: Vim, vi, venci.