Sem açúcar, sem afeto

Henrique Autran Dourado

Chico Buarque tem muitas canções e letras dedicadas a mulheres, algumas para serem por elas cantadas. Em 1966, compôs para Nara Leão: “Com Açúcar, com Afeto / fiz seu doce predileto / pra você parar em casa”. Palavras de esposa submissa, como era costume no passado – aliás, realidade que teima em sobreviver até hoje: a mulher subserviente. Era a primeira música em que o compositor assumia sua porção mulher, cantando como se tal fosse. Nara havia dito que gostava de canções “em que a mulher fica em casa, chorosa, enquanto o marido fica na rua, farreando” (HOMEM, Wagner. “Chico Buarque”. SP: Ed. Leya, 2009). Nem o doce favorito pôde fazê-lo abrir mão da boemia: entra em um bar a cada esquina, chega em casa quando quer.

Chico repete o tema muitas vezes, como em Cotidiano (1971): “todo dia ela faz tudo sempre igual / me sacode às seis horas da manhã / me sorri um sorriso pontual / e me beija com a boca de hortelã”, rotina servil do dia a dia. Em “Feijoada Completa” (1977), ele manda a esposa fazer comida “pra um batalhão”: “… bota a mesa no chão que o chão tá posto / e prepare a bebida e o tira-gosto” (…) / “Aproveite a gordura da frigideira pra melhor temperar a couve mineira” – assim, comandaria a sonhada festa de anistia para quando os exilados retornassem ao Brasil (op. cit.).

Em “Mulheres de Atenas”, fala em nome dos homens: “Mirem-se no exemplo / daquelas mulheres de Atenas / Vivem pros seus maridos / orgulho e raça de Atenas”. A veia poética do autor foi buscar na antiguidade grega o retrato em que as mulheres de hoje se espelhariam. Chico, machista da pior laia? Para quem o conheceu, claro que nunca. É sangue do poeta como que cantando o sofrimento da mulher no dia a dia: manda-a servir a mesa para os amigos se esbaldarem de feijoada e cachaça, ou se servem ao homem que retorna a Atenas após a batalha. Realidade que não é a dele, Chico, um gentleman, tímido que só. Mas é o que acontece, como foi no passado e ainda hoje insiste em rondar as páginas dos jornais – mulheres exploradas, seviciadas e até assassinadas. E como ainda há disso nesses brasis!

Mas de onde este assunto? Chico declarou em um documentário sobre Nara Leão que não mais cantará “Com Açúcar, com Afeto”, dizendo-a uma canção machista, embora há décadas fora de seu* repertório. Ou se arrependeu de cantar como se fosse uma mulher? Não proibiu a canção, nem haveria como, mas provocou um escarcéu.

Nosso cancioneiro estaria ceifado pela metade segundo a lógica pós-moderna, a tal “politicamente correta”. E seriam proscritas tantas músicas, como as que os carnavais cantaram: “Olha a cabeleira do Zezé / será que ele é / será que ele é?” (J. R. Kelly e Roberto Faissal, 1964). Homofóbica ao extremo, diriam hoje. Também politicamente incorreta, do “misampli a ferro e fogo / não desmancha nem na areia” e / “nega do cabelo duro / qual é o pente que te penteia?” – com essa deliciosa aliteração percussiva, “tiquití” (R. Soares e David Nasser, 1942, ano de “Amélia”, do Ataulfo e Mário Lago). Homofóbica e racista, diriam hoje de uma e outra, com certeza.

O francês Debret (1768-1848) e o alemão Rugendas (1802-1858), pintores que viveram no Brasil e retrataram negros tratados como fossem animais de carga e recebendo chibatadas, deveriam ser esquecidos por mostrarem a dura realidade daquele tempo? E “O Navio Negreiro” (1868), do grande poeta Castro Alves, obra-prima de nossa literatura, falando dos negros sendo arrastados à força da África para serem trazidos em um navio a fim de servirem de escravos aos senhorios? Seria esse poema para ser esquecido? Mais: Cleo Monteiro Lobato, neta do escritor, trocou “a boa negra deu uma risada gostosa, com a beiçaria inteira”, por “Nastácia deu uma risada gostosa”).

Retrata-se o mundo tal como ele é ou era, coisas atuais, vivíssimas, ou de época. Pois se existiu – e de alguma forma ainda existe -, é como retrata Drummond, em “Confidências de um Itabirano”: “Itabira é apenas uma fotografia na parede, mas como dói!” A dura realidade do negro, da mulher, do índio, dos homossexuais e minorias ainda perdura, como no recente sacrifício do congolês Moïse Mugenyi Kabagamba, 24, em um quiosque da Barra da Tijuca chamado Tropicália, por cobrar duas diárias que lhe eram devidas como empregado (Caetano disse que chorou quando viu o nome do movimento que incluía Gil, Gal, Mutantes, Capinam e vários outros, além dele, e “sobretudo Hélio Oiticica, que criou o termo”, associado ao episódio).

Voltemos ao Chico, que afirmou em um documentário sobre Nara Leão, para satisfazer as feministas, que não mais cantaria aquela faixa (BBC News, 2/02). Mas foi mais razoável à revista Realidade, em 1972, quando disse que tem “controle limitado sobre o que compõe” – ou seja, podem cantar, fazer o quê? Mas ele não mais canta por apelo das feministas? Claro que explorar psicologicamente esse filão dá “pano pra manga”, é rosca sem-fim. Chico não precisa de autopromoção, mas o que o levou a declarar que não mais cantará uma música fora de seu repertório há mais de cinco décadas? E as tantas outras que falam da submissão e da exploração da mulher? Segundo Andreia Oliveira, a música “pode ser entendida como um modelo de relação de gêneros a não ser seguido” (UFRJ: Dissertação de mestrado, 2018). Nas redes sociais, mulheres que se declaram feministas afirmam que não veem nela a defesa da submissão da mulher.

Enigmas o gesto do Chico, o lado feminino do homem, o machismo, o racismo e outros “ismos” que nunca serão totalmente decifrados.