Retrospectiva introspectiva e o banquete dos mendigos

Henrique Autran Dourado

TVs, jornais, revistas, internet. Por todos os meios, nos últimos dias do ano passado houve uma avalanche de retrospectivas, depoimentos ou “flash-backs”, como se dizia dos trechos de antigos filmes lembrados no presente. Em sua primeira acepção, O Houaiss define retrospectiva como “uma exposição em que se apresentam as obras de um artista, de uma escola, com perspectiva histórica, mostrando a respectiva evolução <o museu fez uma r. da obra de Lasar Segall>”. Interessante definição, além da costumeira a que me referi no princípio, até porque temos visto mais um retrospectivo (s.m.), “relativo a fatos passados; que se volta para o passado” – desde o advento da telinha, um “flash-back” picotado do que se foi com o ano velho.

Quem nasceu de quem, quem morreu entre as “celebridades e famosos”, especialmente em tempos de pandemia, deram o tom dessas coleções de “quadros em uma exposição”, que depois começam a se diluir nas névoas dos dias, meses e anos. Houve o que se pinçar entre uma coisa boa aqui e outra ali: feitos olímpicos, medalhas, maratonas, casamentos de ricos e famosos (feitos ou desfeitos com estardalhaço pela mídia). O cidadão comum, excluído, é o pobre neste rol de assuntos, as alegorias de que contarei a seguir.

Tudo lembra “O Banquete dos Mendigos”, obra derradeira e inacabada de Mário de Andrade da década de 40. No livro, o autor faz um contraponto entre os pratos estrangeiros, sedutores e muito vistosos, e os nacionais, talvez de maior riqueza em sabor, mas de nem tão atrativo glamour. Trata-se de um paralelo com o que acontecia musicalmente na época, quando Andrade pedia que os compositores “transpusessem” elementos do folclore nacional à música de concerto. No banquete, degustavam e comentavam sobre música quatro entre cinco convidados: a anfitriã, apreciadora das manifestações artísticas, uma cantora famosa, um político benfeitor das artes e um compositor esquecido e pobre.

“Ópera do Mendigo” é o título em português para “The Beggar’s Opera”, de John Gay (1724) – também título e capa de um álbum dos Rolling Stones de 1978 – dois séculos mais tarde adaptada por Bertold Brecht e Kurt Weill como “A Ópera dos Três Vinténs” (1928), sempre tendo como fio condutor a discrepância entre as classes sociais e o fruir artístico – banquete não muito diferente em sabor filosófico do descrito pelo nosso Mário de Andrade. O assunto também ressurge com Chico Buarque (“Ópera do Malandro”, 1978).

Os banquetes jornalísticos de encerramento do ano serviram-nos de tudo, com escassos pratos finos e iguarias apetitosas, porque houve muito mais tristezas, acidentes, doenças, mortes, catástrofes nas mesas simbólicas das telas e monitores. Em várias retrospectivas parece que nos ofereciam a parte dos mendigos no banquete, e não a da “finesse”, que terminou por não se sobressair perante os vendavais negativos por que passaram o mundo e o país. No Réveillon, descortinou-se um novo ato da ópera da vida: fogos de artifícios ao redor do mundo iluminaram esperanças, a fé em tempos melhores e na cura, se não para todos os males, ao menos para os que mais nos afligem e amedrontam, e que ameaçam tomar-nos o que temos de mais precioso neste banquete: nossas próprias vidas e as dos que nos são mais próximos.

Contra a ameaça de variantes arrasadoras da Covid, exaltou-se a ciência das descobertas, vacinas de diversos tipos em vários centros do mundo fazendo o que era angústia e medo transbordar em lágrimas de felicidade nos olhos, no instante mágico da inoculação. Sim, elas foram as protagonistas da grande ópera de 2021, e continuarão sendo em 2022. Depositemos nos cientistas, vacinas e medidas protetivas nossas esperanças e a imensa fé no porvir – que, não curiosamente, também serve de alívio para a amargura dos esfomeados, vítimas de incêndios, alagamentos e outras catástrofes. As vacinas inocularam corações e mentes com esperança por dias melhores, além de protegerem nossas vidas na forma do controle ora possível pelas mãos de profissionais abnegados – cientistas, médicos, enfermeiras e técnicos. Entre tantos infortúnios, pensando na vacina como o “biscoito fino” – expressão do velho Mário de Andrade – a que o povo tem tido acesso, providencialmente serviu-se à mesa para que todos tenham sua cota de iguarias e a possibilidade de degustar o que é lhes justo e de direito. Devemos isso ao Sistema Único de Saúde, criado pela Constituição de 1988 à imagem e semelhança do NHS britânico do pós-guerra, sistema que nos provê bálsamo e salva-vidas, apesar do descaso e da inoperância dos que têm por obrigação mantê-lo.

Haveremos de varrer para trás o que ficou de ruim e buscar esperanças, abrindo caminho para o ano que se apresenta em longa e árdua batalha pela frente. Onde houve trevas, que surja a luz, onde faltou pão, que haja o que comer – seja por lídimo direito ou pelo exercício da solidariedade entre os homens, a chamada fraternidade. Contra as guerras, que sejam ouvidos os clamores pela paz e flutue aos quatro ventos a bandeira branca nas mãos de todos; se males foram perpetrados pelo apetite incontrolável de tiranos, poderosos e bandidos insaciáveis neste grande banquete passado, que no futuro sucumba diante daquilo que é predestinado por Deus e pela natureza para vencer e consolidar um mundo melhor: o bem.

Diante de todo o dito ou não dito, concluo lembrando uma celebração meio esquecida: 1º de janeiro foi o Dia da Fraternidade Universal!