Pensando a música de concerto no Brasil





Reflexões: parte 1

Arnold Schönberg (1874-1951), um dos expoentes da música do século 20, não foi um experimentalista inconsequente. Pelo contrário, é autor de tratados de harmonia tradicional, contraponto e composição. Disse ele: “A grande tarefa do educador consiste em conhecer o que foi feito no passado, estabelecer rumos para o presente e projetar aquilo que, presumivelmente, deverá acontecer”. Assim, pensemos o Brasil da música de concerto, dos primórdios à atualidade, em forma de reflexão sobre os rumos de nossa arte – dos quais nós músicos somos, mais do que cúmplices, principais agentes.

A vinda da família real para o Brasil, no início do século 19, é o ponto inicial. Com D. João de Bragança, a música e seu ensino foram introduzidos na corte. Já em 1816, chega ao Brasil um importantíssimo músico austríaco, Sigismund von Neukomm (1778-1858), que foi aluno do grande compositor clássico Joseph Haydn, modelo de Beethoven entre outros. Ungido pela sorte, nasceu na mesma casa onde 22 anos antes veio ao mundo Wolfgang Amadeus Mozart.

Professor de D. Pedro I e de boa parte da família real, Neukomm tinha como protegido o jovem padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1820), um compositor de mão cheia, autor de importantíssima obra. Neukomm apaixonou-se pela modinha brasileira, da qual foi grande incentivador aqui e na Europa, chegando a compor dezenas delas. Ele também orientou outros diversos compositores, como o carioca Francisco Manuel da Silva (1795-1865), autor do Hino da Abdicação, de 1831, em 1889 transformado em Hino Nacional Brasileiro por decisão pessoal de Deodoro da Fonseca. (Consta que por “pressão popular”, pois os jurados haviam escolhido o hino de Lorenzo Fernandes). Há que se destacar o contexto da letra do Hino Nacional: foi somente em 1922, 91 anos depois da música, que um decreto presidencial de Epitácio Pessoa, 11º presidente da República, tornou oficial a letra de Osório Duque Estrada.

A escolha da letra criou uma dissonância entre os versos do hino e o modernismo dos artistas da chamada “Semana de 22”, mercê de certo descompasso entre as concepções oficiais do governante e a dos artistas, já que naquele mesmo ano acontecia o histórico movimento modernista, marco na cultura brasileira. Artistas como Mário de Andrade, Anita Malfati, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Drummond, Menotti Del Picchia, Victor Brecheret e Di Cavalcanti, a fina flor da modernidade de então, fizeram uma revolução conceitual na arte brasileira. Por outro lado, a “Semana” teve, em relação à música, um nome maior agregado ao evento, Heitor Villa-Lobos, que negou sua participação no movimento modernista, afirmando apenas que veio pago para abrilhantá-lo (bem ao seu estilo: “Não fiz nada, nada, nada, nada especial de Arte Moderna”, disse em entrevista, em 1957).

Com o regime republicano, a música de concerto entra em novo ritmo e compasso. O Conservatório de Música, fundado pelo decreto imperial nº 238, de 1841, por D. Pedro II, erguido em 1848 às expensas de duas loterias anuais, passou a chamar-se Instituto Nacional de Música e por fim Escola Nacional de Música, agregada à então Universidade do Brasil (hoje UFRJ).

Mário de Andrade (1893-1845), autor de “Paulicéia Desvairada”, também da Semana de 1922, foi o responsável por um revigoramento na música de concerto brasileira: em 1935, ele era diretor de cultura da cidade de São Paulo, conhecido e renomado estudioso e professor do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, um homem de cultura ímpar, orientador de nomes como Camargo Guarnieri (1907-1993). Nomeou o musicólogo Martin Braunwieser (1901-1991) – coincidentemente,  também austríaco como Neukomm – para o cargo de instrutor de canto coral dos Parques e Jardins de São Paulo, o que o levou a uma publicação sobre os principais erros ao se cantar o Hino Nacional Brasileiro. Tanto na música quanto na letra, os piores vícios foram coletados por esse austríaco-brasileiro da mesma Salzburg de Mozart e Neukomm. Os vícios, só para falar da letra do hino, iam de “do que a terra margarida” a “em teus seios, ó liberdade” (os participantes alegaram que mulheres possuíam dois). Pior, grande parte do coro do Parque do Ipiranga não sabia onde teria sido proclamada a independência (mas fora ali mesmo, ao lado do riacho do mesmo nome)! Um homem com a cultura e espírito cívico de Braunwieser não poderia aceitar aquilo, e chegou a compilar quase 150 desses erros mais comuns (“Revista do Arquivo Municipal” – “Erros e defeitos no modo de cantar do Hino Nacional”).

A introdução desse gênero, antes restrita à corte, especialmente no Rio de Janeiro, e às igrejas de São Paulo e cidades históricas mineiras, como São João Del Rei, entre o povo foi tarefa imensa, e demandaria muito tempo e muita luta para que fosse aceita pelo gosto popular. É de se notar que essa introdução foi trabalho de Mário de Andrade junto ao escritor, poeta, historiador e amigo próximo Paulo Duarte, após 1935, depois de nomeado diretor do Departamento de Cultura e Recreação da Prefeitura Municipal de São Paulo. Em 1975, o então prefeito de São Paulo, Olavo Setúbal, transformou o Departamento em Secretaria Municipal de Cultura, nomeando seu primeiro titular o especialista em dramaturgia Sábato Magaldi, professor emérito da USP e hoje membro da Academia Brasileira de Letras, que tive o privilégio de ter como primeiro orientador no curso de doutorado.

(Continua na próxima edição)