Pavana para uma criança morta

Henrique Autran Dourado

NY Times, 25 de maio de 2022: “Famílias angustiadas aguardam notícias após o massacre na escola do Texas”. A matéria de capa informava que no dia anterior 19 crianças foram assassinadas a tiros em uma instituição de ensino elementar da cidade de Uvalde, o pior massacre em dez anos desde o da escola Sandy Hook, em Newton, Connecticut. O assassino, de apenas 18 anos, também morreu no local. Segundo o porta-voz da Polícia Chris Olivarez, em entrevista ao “The Today Show”, da TV NBC, além das crianças foram assassinadas duas professoras. Antes de se dirigir ao local do crime, o atirador Salvador Ramos alvejou uma senhora de 66 anos, que os policiais disseram ser a avó dele, que esteve em condições críticas, mas sobreviveu.

O massacre de Uvalde reacendeu a discussão sobre a crescente violência armada nos EUA, que têm mais armas de fogo do que cidadãos. Pior, cada massacre parece servir de provocação para outro: o do dia 24 seguiu o da semana anterior, protagonizado por um supremacista branco que matou dez pessoas em um pequeno supermercado de Buffalo, NY. Sobre Uvalde, o senador Chuck Schumer, democrata e líder da maioria, tentou sensibilizar os colegas republicanos: “com os diabos, calcem os sapatos desses pais ao menos uma vez!” e manifestou-se por mudanças na legislação que rege os armamentos, aumentando as exigências sobre antecedentes para compradores de armas – medida tímida em um país com tradição de assassinatos em massa, crimes seriais e mortes de políticos.

A proposta de Schumer seria mero paliativo contra uma tradição arraigada nos costumes americanos desde as 13 colônias britânicas, cuja independência se deu em 1776 com a fundação dos Estados Unidos da América. Os cidadãos, antes armados nas colônias, prosseguiram, e o costume permaneceu até no Texas dos caubóis, estado do massacre de Uvalde. O senador republicano Ted Cruz minimizou, disse que já tinha visto muitos desses ataques a tiros, e que se opunha à ideia de “restringir os direitos constitucionais dos americanos”. Em 2019, “ataques gêmeos” com armas de fogo aconteceram em El Paso, Midland e Odessa, em West Texas.

A NRA (National Rifle Association) é uma poderosa organização que tem o apoio de Donald Trump. O senador Cruz, que se manifestara a favor do “direito constitucional às armas” foi palestrante em uma convenção da associação na sexta, 27 de maio, em Houston, Texas, onde a estrela foi Donald Trump. Trata-se de um estado onde, ao entrar em uma picape, às vezes se fala “vou de atirador” (I’ll ride shotgun”): “vou no assento do passageiro”. É comum picapes trazerem suporte para um ou dois rifles na cabine da frente, ao alcance do passageiro “shotgun” (e é comum jovens de outros estados usarem a expressão para dizer “carona”). Uma semana antes do crime, no dia em que completou 18 anos, Salvador Ramos, o assassino de Uvalde, adquiriu dois rifles de “plataforma AR” e 375 projéteis – o suficiente para dez ataques como o do dia 24.

No Brasil de 85 anos atrás, o conceituado jornal carioca Correio da Manhã, de 12 de agosto de 1937, trazia uma chamada para a matéria principal: “Mussolini diz que só um povo armado é forte e livre”, explorando essa maldita simbiose já tão analisada: arma é poder, poder é liberdade. A ideia era criar uma enorme milícia armada a fim de eternizar no comando o “Duce”, como o líder fascista italiano era conhecido. “Com uma arma”, pensava-se, “sou mais forte, e com força sou livre” – concepção tresloucada de liberdade. Um povo armado não é um povo mais forte, e muito menos livre ou feliz. Com o poder de matar, o cidadão pode sentir-se mais forte do que os demais, mas conviria pensar também que estar vivo é poder ser morto. Por incrível que pareça, no Brasil este tipo de velha filosofia barata parece se repetir, a exemplo do recente “Eu quero todo mundo armado. Que povo armado jamais será escravizado” (Folhapress, 31/05/2020). A escalada armamentista acirrou a beligerância mortal entre bandidos e policiais, a um ponto insuportável para o país.

Na segunda mais letal operação carioca da história (24/05), agentes do Bope, da PF e da PRF fortemente armados mataram 23 pessoas na favela de Vila Cruzeiro, no Rio, entre elas inocentes, e 12 sem passagens pela Justiça. Ação repleta de torturas, humilhação, espancamentos e muitos tiros. Só perdeu para a chacina de Jacarezinho, um ano antes, quando ao menos 28 pessoas foram mortas. É com esse estímulo à posse, propriedade e uso de armas de fogo pela população que violência e mortes se multiplicam, “filosofia” que vem crescendo nos últimos anos. Até Hitler, em 1938, repercutiu o discurso do “Duce” e venceu um plebiscito sobre o assunto, cabalando votos de 90% dos eleitores.

Um referendo de 2005 perguntou: “O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?”. 63,94% votaram “não”, e 36,06% optaram pelo “sim”. Segundo o jornalista Josias de Souza, em seu blog da Folha, o “não” recebeu, para a campanha, R$ 8,4 mi e R$ 9,1 mi – um total de R$ 17,1 mi, já corrigidos pelo IPCA-IBGE -, da Taurus e da CBC, as maiores fábricas de armas e munições do país. Reproduz-se em pequena escala o poder da NRA americana, que congrega as indústrias do setor.

O título deste artigo vem da triste “Pavane pour une infante défunte”, de Maurice Ravel, orquestrada em 1910. (A pavana era uma dança processional lenta de cortes europeias dos séculos 16 e 17). Que haja uma para cada criança, e um réquiem cada adulto morto, lá e cá. Isso há de ter fim.