Acredito que grande parte da insatisfação e frustração na vida de um filho se deve ao mau exemplo dos pais, especialmente a figura paterna. É natural que o filho quer ser realizado materialmente na vida, mas que tenha a parte financeira como secundária: inverter valores é sempre perigoso. O filho quer se espelhar desde cedo no pai, de “pater”, que também quer dizer terra, de onde “pátria”, e essa ligação é tão forte quanto esse simbolismo.
Quem há de se orgulhar de um pai pilantra, corrupto, desonesto, falso? Ora, claro que somente o filho que nele se espelha, e acha que a vida é mesmo regida pela Lei de Gérson: “o brasileiro gosta de levar vantagem em tudo”. Até a personalidade sem rumo do filho de um bom pai pode ser desviada pelas trilhas obscuras da vida, ele se torna pródigo mesmo sob o teto paterno.
Minha mãe teve um pai herói, constitucionalista preso e deportado pelo Getúlio, embora detestasse todas as histórias sobre aqueles tempos que passou, ainda criança, longe dele quando mais precisava, tinha ojeriza pelo assunto. Mas, dentro de si, guardava o pai-herói em segredo. Meu pai também foi contemplado com o dele, que começou juiz de direito na pequena Monte Santo de Minas – terra também de Ruth Luz, falecida em 2010, que foi professora do Conservatório de Tatuí e autora do hino da cidade. Meu avô chegou a desembargador em Minas e depois a ministro de Tribunal Superior no Rio. Foi seu pai-herói quem lhe deu o norte, a bússola, e, como diria o Gil, “régua e compasso”.
Garimpando o imenso acervo de mais de 2.000 peças que, juntamente com os 5.000 livros, pelo testamento de meu pai, vai para a Biblioteca da UFMG, minhas irmãs, no Rio, vêm pescando alguns textos preciosos, que fazem crescer o orgulho e a admiração pela figura paterna – e os efeitos são vivíssimos, mesmo posto que sem a presença dele. Desde discursos para JK a coisas escritas para não serem publicadas, como uma carta pessoal para o Carlos Drummond, um desabafo contra a censura – na qual eu, surpreso, descobri-me citado e elogiado (havia dito a ele que “deveria ter orgulho de ter sido censurado”, e que eu me orgulhava disso também!). A carta, que só não é autoincendiável como em filme de ação de Hollywood, era para ser guardada por ele e pelo poeta, confidencialmente, e somente entre eles. Havia nela menções a alguns patrulheiros da literatura, figuras às vezes proeminentes, e até dedo-duro do regime na Academia de Letras, de que ele não gostava (teria sido essa uma das razões?). Foi um desabafo, e, assim como a conversa tida com Drummond pela manhã, segundo escreve logo ao início, deve ter havido outra ou outras, mas confidência era confidência, de confiar (“confidere”, em latim), portanto morreria entre os dois. Mas meu pai não a jogou fora. Será que a deixou bem guardada para os filhos um dia terem um retrato do que passou na vida naqueles duros tempos?
Detalhes da segurança na visita de Eisenhower ao Brasil, recepção ao grande escritor André Malraux, que veio em nome de De Gaulle, discursos como “ghost-writer”, tudo é historicamente fundamental. Mas o que tem chamado a atenção – e nos atraído, nessas descobertas -, talvez tenham sido, mais ainda agora, alguns escritos quase didáticos sobre a arte de escrever, tudo organizado em blocos, alguma coisa talvez publicada na imprensa e muitas inéditas. Entre esses textos, “Dois tipos de romance”, “Realidade e alienação do romance”, “Romance e personagem”, “Técnica narrativa e erros gramaticais” e “Um aprendizado literário e sentimental”, nota-se a preocupação com o didático, e isso valia para quem fosse ler ou para ele mesmo refletir, o que sempre é um meio de se autoaprimorar. Publicou livros como “Uma Poética de Romance” (1973), “Uma Poética de Romance: Matéria de Carpintaria” (1976), “O Meu Mestre Imaginário” (1982), “Um Artista Aprendiz” (2000) e “Breve Manual de Estilo e Romance” (2003). Os que se aventuram nessa arte têm nesses escritos relatos da experiência de um homem que publicou seu primeiro livro aos 19 e escreveu até onde a saúde, já complicada, o permitiu. Leu e releu de tudo inúmeras vezes (ao final, vão restar-lhe apenas seis ou sete, disse um dia), de Machado a Bandeira, de Cervantes a Proust e de Faulkner e Joyce, sempre que possível no original.
Era um autor sistemático, metódico, que dizia não acreditar em inspiração (soa como “sopro divino”), mas em ideia súbita: uma vez surgida “do nada”, sabe-se lá se por associação, um objeto, uma palavra, uma relembrança dos seus tempos de criança até os 17 anos na pequena Monte Santo, começava a rabiscar notas (taquigrafia espanhola, mais rápida, dizia) em pequenos cartõezinhos, claros como hieróglifos, para mim. Em determinado momento, as anotações já eram uma arquitetura livro pronto, era hora de começar o trabalho braçal de desenvolvê-lo na velha máquina de escrever. O horário era certo e sagrado, questão de método mesmo, e não apenas por causa do seu ganha-pão como funcionário público, que lhe permitia escrever. Curioso, segundo meu amigo Antonio Ribeiro, que foi aluno de composição do Camargo Guarnieri, mestre maior, é que o gênio de Tietê pensava da mesma forma: inspiração? Sentar e começar, trabalho duro, trabalho metódico.
Nunca pensei em ser escritor um dia, apenas escrevo, mas tenho aprendido essas lições como as outras, de vida, que já carrego como a melhor herança. Tudo isso forma um retrato completo, e, como meus avós foram para meus pais, faz dele o meu espelho e herói.