O desatino da bossa

Henrique Autran Dourado

Como todo movimento musical na história, não se pode precisar o início da bossa nova, assim como não se pode estabelecer quando começaram os movimentos norte-americanos que mais lhe foram influentes, como o bebop e o cool jazz. Do bop saíram nomes como os trompetistas Miles Davis e Dizzy Gillespie, os contrabaixistas Thelonious Monk e Ray Brown e os saxofonistas Charlie Parker e Sonny Stitt, dos quais apenas dois não assisti ao vivo. E vieram o jazz-rock, o pop-jazz, o jazz-fusion, o cuban-jazz e naquele miolo todo estava a marca que contaminava a nascente bossa; aos poucos, ao contrário, nós influenciávamos os americanos. Interessante lembrar a música “Influência do Jazz”, de Carlos Lira. Coisa do CPC da UNE, crítica mas abraçada às novidades. “Estamos aí” (Ferreira/Einhorn), de 1962, é um tema intricado para se cantar, e faz sucesso até hoje, como tem sido desde a versão inesquecível de Leny Andrade. Pega carona no estilo, também, a grande sambista Elza Soares, um prodígio do chamado “scat singing”, técnica que faz uso de um improviso geralmente em alta velocidade utilizando percussiamente sílabas desconexas. A Elza o Brasil deve o samba-jazz, o sambalanço e suas variantes.

A propósito das controvérsias naturalmente surgidas sobre essas influências, um bamba paraibano chamado Jackson do Pandeiro saiu com a genial “Chiclete com Banana”, tirando uma do mimimi generalizado: “Só ponho / bebop no meu samba / quando o Tio Sam / pegar no tamborim”, para mais adiante desafiar “… quando ele pegar / no pandeiro e no zabumba / (…) eu vou misturar / Miami com Copacabana / chicletes eu misturo com banana / e o meu samba vai ficar assim”. Certa dissenção que houve nos EUA também chegou aqui: uma prática jazzística de pendores mais brancos, intelectualizada, poucos altos e baixos melódicos, voz meio que falada, era o cool-jazz (disso o Nelson Gonçalves, o vozeirão romântico, criticando o jeito de certa ala bossa-novista de cantar, tirou proveito: gravando com Caetano Veloso, que naqueles tempos navegava nas ondas do cool-bossa, o baiano pediu a Gonçalves que subisse um pouco o tom. Estava difícil, para ele, um tenor, dialogar com aquele vozeirão de barítono no registro mais grave. Gonçalves abusou da ironia e atirou em um terceiro: “vai falando, como faz o João Gilberto”, dois coelhos de uma cajadada só.

O cool pegou também em Carlos Lira, Dick Farney, Lúcio Alves e outros, sem deixar de fora vozes femininas suaves e meigas como a de Nara Leão. Seria o tempo da bossa-crooner? Já estávamos no final dos anos 1950, quando o movimento tomava corpo para “tomar de assalto” os EUA, no famoso show de estrelas no Carnegie Hall, em 1962, quando mostraram o que é que o brasileiro tem. Encantaram Stan Getz, Frank Sinatra e muitos outros, para depois adotarem o “brazilian jazz” – que àquela altura já existia aqui – e que contaminou a América do Norte.

Um compositor, cantor e pianista brasileiro de nome artístico americanizado, Jhonny Alf, de “Eu e a Brisa”, havia sido deixado um pouco à margem da turma, pois alguns o achavam “made in USA” demais. Ajudou-o Tom Jobim, que de cima de sua autoridade afirmou que Alf teria, sim, sido o pai da bossa nova. Estava batizado o novo bossa-novista. Mas foi em 1955, num trabalho conjunto de Jobim e Billy Blanco, “Hino ao Sol”, para muitos o início da bossa, o despertar de um movimento que persiste e influencia até hoje – mesmo que Billy Blanco, também arquiteto, fosse um pouco obscuro para o grande público, uma timidez que o levava ao intimismo da bossa. (Nascida nos apartamentos de Copacabana, onde bateristas como Edison Machado, Dom Um Romão e Milton Banana tinham de tocar “como em uma caixa de fósforos”, para o ruído não gerar brigas com a vizinhança. Toc-toc da baqueta esquerda no aro da caixa, às vezes apenas a do tipo escova, que com seu xique-xique fez reduzir o volume dos grupos: de vilã, a bateria passou a heroína da bossa de Copacabana.

Houve movimentos de puristas, claro, contra a “invasão ianque” do nosso samba, nosso puro e casto samba. Alguns críticos se alvoroçaram contra a bossa nova, esquecendo-se de que o auriverde samba nascera do maxixe, danças angolanas e congolesas. O maxixe veio da habanera, tango brasileiro e polca, e já era malvisto pelas classes abastadas, tido como semelhante ao Lundu, dança do final do século 19 dos cabarés dos bas-fond cariocas. Aquela pureza tão decantada pelos nacionalistas carrancudos nunca existiu, isso aliás não existe na música – fosse assim a única música genuinamente brasileira seria a dos povos indígenas, que chegaram aqui muitos séculos antes de nós. E o que veio depois, com a bossa nova, também tinha traços de Debussy e Ravel, principalmente pelas mãos de Jobim. Tudo o que sucedeu a bossa teve o DNA dela, como a jovem guarda, a tropicália, ritmos em que a batida de violão do adorado João Gilberto volta e meia reaparece, tocado com as pontas dos dedos em sequência rítmica que marcou a história.

Esses dissensos e casamentos na música são fontes de rica diversidade, mais precisamente o alimento da chamada linha evolutiva da MPB. Quando se digladiam ou quando se casam, forças aparentemente antagônicas fazem a música viva, enriquecendo-a e alimentando seu caminho com novos elementos. Os mais conservadores se enclausuram. Lembrando a filósofa Marilena Chaui, caminhemos com o pensador de seus estudos, o espanhol Espinoza. Uma frase resume tudo, da arte à política: dos conflitos emergem as soluções.