O coronel, o pescador e o retirante

Henrique Autran Dourado

Gabriel García Márquez nasceu em Aracataca, Colômbia, em 1927, e radicou-se em Ciudad de Mexico, lá ficando até morrer, em 2014. Nobel de Literatura (1982) por sua obra – principalmente “Cem Anos de Solidão”, ícone do “realismo mágico” -, influenciou gerações. Fortemente apegado à sua Colômbia natal, carregava o trauma do período chamado “La violencia”, uma década que lembra outros países da América Latina: censura, estado de exceção, perseguições e um saldo de mortos estimado em até 200 mil.

Durante os anos em Paris, no Hotel Trois Colleges, Márquez escreveu uma novela, sem o mesmo sucesso de “Cem Anos”, 11 anos depois, mas de grande importância, “Ninguém Escreve ao Coronel” (“El coronel no tiene quien lo escriba”, de 1961). Ele conta a história de um militar reformado que aguardava, passados 15 anos, a carta oficial que lhe daria a sonhada pensão militar. O coronel vivia com a esposa asmática (“também no amor alguma coisa teria envelhecido”, constatou), uma vida difícil, de fome, isolado pelo toque de recolher de sua pequena cidade. Morria-se apenas de “morte matada”, como se diz aqui, até que um músico da cidade faleceu de causa natural, um acontecimento! (Se não por causa do músico, pela efeméride do óbito). O coronel se aprumava, então, para ir ao enterro, a primeira “morte morrida” da vila em anos, e assim ele dá o tom à novela.

Como em “Cem Anos de Solidão”, as palavras “soledad” e “solitud” parecem ser o pano de fundo para Márquez desenvolver seu texto, envolto em angústias e mistérios (importante: “Coronel” não se encaixa no rótulo “realismo mágico”). Os nomes de eventuais personagens não aparecem, o foco é centrado no coronel, isolando-o. No afã de ganhar dinheiro, passaram até fome para engordar um galo de rinha do filho morto recentemente. Em vão também a herança do filho, a que tinha direito – e que, ao par de sua pensão, nunca chegava, como o Godot de Becket. Em suas memórias, Márquez confessa que pensara em seu avô Nicolás, que nunca recebera um peso sequer depois de reformado.

De Cuba (1951), país que adotara para viver entre o rum, a pesca e a literatura, o norte-americano Ernest Hemingway (1899-1961) escreveu “O Velho e o Mar” (“The old man and the sea”), uma de suas mais importantes novelas.  Prêmio Nobel (1954) como Márquez, neste livro Hemingway consegue penetrar a mente solitária de Santiago, velho pescador, narrando uma luta de vida ou morte, centímetro por centímetro de linha, gota por gota de suor, uma vara de pesca contra um imenso marlin, o maior peixe-espada de sua vida. Dias se passaram e Santiago já delirava, disputando um “cabo de guerra” com o indomável peixe, às vezes vendo-o até como amigo, que de tão especial talvez nunca poderia ser servido à mesa. O que lhe importava era aquela luta, duelo de Titãs.

Usando um arpão, Salvador fisgou a presa, que afinal seguiu rebocada pelo barco. Com suas últimas forças, levava o peixe rumo à praia, depois de ter-se arriscado, para a conquista, na perigosa corrente do Golfo, não longe da Flórida. Enquanto retornava, inevitável que o sangue do peixe, colorindo de rubro o mar, se tornasse um chamariz infalível para tubarões. Já sem o arpão, Salvador mata um deles com uma lança improvisada, um olho naquele peixe amarrado no barco, quase seu cúmplice. Com um facão, conseguiu afastar outros tubarões, mas chegando ao seu destino o que restara do peixe era uma carcaça e um  esqueleto de incríveis 5,5 metros, para espanto da comunidade e pavor dos turistas. Uma luta solitária, que deixou marcas e cicatrizes profundas nas mãos e no corpo de Salvador, além de gravada na mente a disputa, um animal contra outro.

Completa esta trilogia sobre a luta solitária o pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999), o predileto de muitos. Versos bordados com maestria ímpar, riqueza de palavras, o frasear, o ritmo e a sofisticação transbordam em versos que soam simples, mas são contraditoriamente bastante complexos e plenos de rico conteúdo para leitura atenta. Assim é “Morte e Vida Severina” (1955), de contornos regionalistas, amarga descrição da odisseia de um retirante nordestino. (Sua crítica social lhe valeu a pecha de comunista).

O drama de Severino era aquele do migrante do sertão, e tem início com ele, sertanejo, a se apresentar: “O meu nome é Severino / (…) / Como há muitos Severinos / (…) deram então de me chamar / Severino da Maria. / Como há muitos Severinos / (…) fiquei sendo o da Maria / do finado Zacarias / (…) Como então dizer quem falo / (…) é o Severino / da Maria do Zacarias / lá da serra da Costela / limites da Paraíba”.

É dura a caminhada, os diálogos secos e curtos, sem dourar a sina (“fazendo dos dedos iscas / para pescar camarão”), tudo lembrando um cordel, em lamento: “nos intervalos de pedras / plantava palha”. Musicados por Chico Buarque, versos inteiros sobre uma única sepultura revelam-se pungentes – “Esta cova em que estás / com palmos medida”-, sempre com forte apelo social: “é a parte que te cabe neste latifúndio” (ver em: https://www.youtube.com/watch?v=z–VNQUENbE)

O sertanejo vai trincando os solados dos pés descalços no caminho árido, em sua luta solitária contra a fome (e a morte que um dia virá, inexorável). Assim como os personagens desta trilogia, é preciso que nesses tempos empreendamos alguma luta, mesmo que solitária. Por um ideal, por dias melhores.