Henrique Autran Dourado
Nesses tempos ricos em neologismos, mesmo que alguns sejam verdadeiros “chutes” não providos de conceito maior que os ampare, o “novo normal” é um a ilustrar a nova vida que teremos de soerguer como kit de sobrevivência em tempos de pandemia. Nada tão definido quanto o “ancien” e o “nouveau régime” franceses, que têm como divisor de águas a Revolução de 1789; ou mesmo, entre nós, a “República Velha”, da proclamação a 1930 e a “Nova”, que a seguiu.
Refletindo sobre este “novo normal”, presumo que seja a vida que levamos hoje, uma existência provisória em isolamento, e, indo além dela, estando ciente de que haverá limitações por um bom tempo, concluí, sem precisar de maiores mergulhos teóricos, que a expressão sintetiza uma radical mudança de costumes, relacionamento e convivência social. Assim, é este o “novo normal” que não nos impõe regras escritas, mas as que nós mesmos nos impomos em defesa da saúde de cada um e do povo como um todo. Desta forma, mudamos todos para esta espécie de “nouveau régime” sem revolução, transformando-nos para sobreviver – no caso de que tratarei adiante, culturalmente, e em particular, musicalmente.
Tantos músicos vêm buscando seu arroz de cada dia, aliás cada vez mais caro, na prática de aulas particulares on-line, um processo bastante simples que pode ser feito domesticamente por Skype ou via plataformas mais modernas, como o Google Team ou o Microsoft Teams. Em princípio, o investimento é praticamente zero, e assim ensaios e aulas presenciais de riscos bem previsíveis para a saúde pública são evitados.
Com inteligência e criatividade, há quem saiba driblar todas essas dificuldades e até a inevitável perda de qualidade sonora das bugigangas eletrônicas. Há que se inovar? Então em frente! O maestro Abel Rocha, velho conhecido, abriu um flanco riquíssimo introduzindo algo realmente novo no cenário: convidados, oito compositores brasileiros criaram obras especialmente para músicos da Sinfônica de Santo André, uma ideia feliz que suaviza a ressalva perspicaz que fez o jornalista especializado João Marcos Coelho (Estadão, 9/09/20), e que segue adiante.
“Detalhe: não há nada mais constrangedor do que maestros e músicos agradecendo a uma sala totalmente vazia. Nada mais empobrecedor, tedioso mesmo, do que assistir a concertos e recitais com som vagabundo e ‘câmeras-estátuas’, inertes em frente aos músicos”. Realmente, para o instrumentista, é como tocar para ninguém, a frio, sabendo que não há quem o veja, quem o ouça, que sinta e interaja com a sua presença. “’Microestreias da Quarentena’, programa lançado em maio, é um ovo de Colombo, tamanha a simplicidade”, diz Coelho. À frente de músicos da OSSA, orquestra que faz um ótimo trabalho, Abel Rocha fez a “Microestreia” de obras de Alexandre Guerra, Alexandre Lunsqui, Chico Mello, João Cristal, José Guilherme Ripper, Leonardo Martinelli, Mauricio de Bonis e Neymar Dias.
Indo ainda mais longe, um outro projeto de Abel Rocha leva o título sugestivo de “Trilogia Trancafiada”, e consiste em três curtas-metragens de até oito minutos cada que abordam o próprio fato que a motivou e lhe deu nome: o isolamento social. São três os pequenos blocos dessa trilogia, este tríptico da clausura: “Ansiedade”, “Acolhimento” e “Adaptação” – sendo o último, ainda segundo Coelho e não sem certa poesia, aquele “em que a incerteza quanto ao retorno à normalidade se cristaliza em espera serena”.
Tanto nas “Microestreias” quanto na “Trilogia”, a inevitável perda de qualidade sonora já tão mencionada por mim – e abordada com ênfase pelo jornalista – fica relativizada em função da importância de novos ingredientes, como as estreias de obras de compositores brasileiros e a incorporação de filmes em vídeo que resultam em “takes” importantes dessa angústia por que os músicos da Sinfônica passam. A “Trilogia” caminha entre trechos já gravados anteriormente pela orquestra, como a Abertura Festiva, de Guarnieri, no segmento “Ansiedade”, enquanto “Adaptação” passeia no belo “Episódio Sinfônico” de Ronaldo Miranda, e “Acolhimento” tem como fundo as “barroquices” da “Vivaldiana” de Denise Garcia.
Sim, as inovações do Abel Rocha com os músicos da Sinfônica de Santo André foram um avanço, um largo passo conceitualmente falando. Uma demonstração de criatividade e, especialmente, de vontade, muita vontade, sem a qual sequer haveria música de concerto no Brasil. Sem plateia vazia, sem decepções, a qualidade do som vestindo-se de comprimária ao papel da música para o público fruir remotamente, da mesma forma que aprendeu a vê-la e compreendê-la parte de uma nova estética como fosse música de um filme do cinema ou da TV. Mais do que nunca é preciso ousar, criar, fugir da estagnação. É fundamental a “vivacidade” a que o mestre Eleazar de Carvalho se referia, o enfrentar de novos desafios, e nunca nos deixarmos frágeis e inertes diante das ameaças de um vírus letal e uma economia dilacerada.
Em nada favorece aos artistas a falta de tudo, o desprezo e a inércia em âmbito federal, desde um simples apoio até a oferta de renúncia fiscal para as empresas investirem em cultura, valores insignificantes se comparados com os “penduricalhos” dos três poderes. Aos titulares dos bons cargos públicos, o “dolce far niente”; talvez, aos olhos da confusa ótica econômica atual, esperem um liberalismo “ancien style”, para lembrar expressão do início deste texto, em que a cultura se resolva por si mesma. (E se nunca se resolver, ora, tanto faz, dirão).