Henrique Autran Dourado
Ao dicionário. Tenho o Houaiss on-line sempre aberto, forma rápida de consultar uma palavra, a origem, etimologia, suas acepções e significados. Medo é o nome de um monte em Média, região da Ásia hoje parte do Irã. Ou o “monte de areia que o vento forma junto ao mar”, a duna. Na psicologia, é o “estado afetivo suscitado pela consciência do perigo ou que, ao contrário, suscita essa consciência”, ou ainda “temor, ansiedade irracional ou fundamentada”. A “ansiedade irracional” leva à síndrome do pânico, distúrbio tão poderoso que faz o acometido ter medo de sentir medo, como no desespero do célebre “O Grito”, de Edvard Munch. De um assalto, de cair, de enfartar, não necessariamente apenas um deles. Uma boa viagem por essa doença foi narrada por William Styron, ele mesmo uma vítima (também autor de “A Escolha de Sofia”), em seu “Darkness Visible”, ou “Escuridão Visível” (em tradução infeliz, foi publicado como “Perto das Trevas“).
Quando jovens, não temos medo, somos eternos, sensação que vai se dissipando à medida que o tempo passa. A idade do juízo, que penso estar entre os 30 e 50 anos, coloca a indestrutibilidade super-humana do jovem em xeque: sim, todos deveremos morrer. À medida que avançamos na idade, o medo pode ocupar menos espaço, nossas mentes se dirigindo para um porto seguro, afastando-nos do que é ruim (ilações nada rígidas, é tudo peculiar a cada ser humano). Quem é da minha geração, mesmo na fase do super-homem, que situei entre a adolescência e a juventude, sabe como se dá essa transição.
Pois eu, talvez nós, leitor, éramos crianças quando do golpe militar de 1964, e adolescentes no AI-5, o golpe dentro do golpe. Certa rebeldia criativa dos artistas era convenientemente tolerada, desde que sob estrito controle e sem questionamentos ao regime, caso de censura. O que levou Caetano a compor “É proibido proibir”, enquanto Gilberto Gil alertava contra o conformismo de muitos com “é preciso estar atento e forte / não temos tempo de temer a morte”.
Friedrich Nietzsche, filósofo prussiano do século 19, lançou o conceito de super-homem (Übermensch), o homem superior, que seria o paradigma de uma nova humanidade – mas não toda, apenas os escolhidos, sabe-se lá por quem e porquê. Influenciou de Richard Strauss (“Assim falou Zaratustra”) ao gênio alemão da ópera Richard Wagner, aguerrido antissemita que perseguiu compositores judeus como Felix Mendelssohn. Claro, tudo isso vestiu como uma luva nas mãos de Hitler, apologista da “raça perfeita” em seu arianismo.
Não há criatura que resista ao medo lancinante da tortura ou da morte. Então fomos uma geração excepcional, a que na idade do destemor da juventude teve medo, sim, mas soube esquecê-lo para sobreviver. Cabe lembrar a cientista francesa de origem polaca Marie Curie (1867-1934): nada deve ser temido, e sim compreendido: são tempos de sabermos mais, para que temamos menos. Repete-se a máxima “o homem tem medo daquilo que não conhece” – quanto mais conhecemos, mais afastamos os temores.
Na cultura popular, o medo é transmitido oralmente, e quase sempre se espelha em incidente passado: do gato preto, de passar debaixo de uma escada, de sair do banho quente e tomar uma lufada de vento. Se há peixe e carne bovina à mesa, deve-se servir primeiro da carne, porque “se quer que a morte o deixe, coma a carne, e então o peixe”. Essas tradições podem ter começado com um fato verdadeiro sem nexo causal, talvez já perdido no tempo: alguém deve ter morrido por algum mal após a ingestão de peixe seguido de carne.
Milton Nascimento, em “Caçador de Mim” (1981), de Magrão e Luís Carlos Sá, desabafou: “Nada a temer senão o correr da luta / nada a fazer senão esquecer o medo / abrir o peito à força numa procura / fugir às armadilhas da mata escura”. Ruy Guerra escreveu: “nasci com a minha morte / dela não vou abrir mão”: a única certeza infalível do pensamento humano. (Nasci também com o DNA de golpes e ditaduras herdado de meus pais, que viveram duas delas, e meu avô materno, preso e deportado pelo Estado Novo em 1932, o meu bisavô…).
O Brasil passa por um período de angústia pré-medo, nem tanto para quem não viveu uma ditadura ou viveu em lugar afastado dela, alienado. E com certeza, o medo é bom para quem o destila em seu veneno intimidador. Motivos para o temor há de sobra: a pandemia, flagelo que mata mais do que guerras e hecatombes e que sofre com o descaso de quem mais deveria dela cuidar. Uma economia em frangalhos, os juros se preparando para a escalada contra uma inflação que, se não é real nos dígitos, certamente o é nas feiras e supermercados. Não há mágica para que uma economia em crise abissal seja controlada tão cedo: a nau está sem rumo! (Não em uma calmaria que nos levará a um descobrimento, mas a uma grande borrasca que poderá arrastar boa parte dos vivos para junto dos que já se foram). Na tragédia, Desdêmona bradava “precisamos enterrar os nossos mortos”; Cristo (Lucas, 9:60) disse: “deixa aos mortos enterrar os próprios mortos”.
Se em 1964 houve um conluio com os EUA, com participação “in loco” do embaixador Lincoln Gordon e do gal. Vernon Walters, da CIA, poderosas indústrias como a IBM e dólares, hoje há uma liderança obcecada pela vaidade, uma classe militar em grande parte de boa índole, mas em outra adulada com privilégios, manipulação por um poder individual crescente. Nada a fazer senão esquecer o medo!