Tempos de George Floyd: multidões ignoram o isolamento social e as barreiras da polícia

Henrique Autran Dourado

Em 25 de maio, George Floyd, um negro de Minneapolis com dois metros de altura e aficionado pelo basquete, foi alvo de uma das mais cruéis ações policiais dos últimos tempos nos Estados Unidos. Hoje nome conhecido e evocado no mundo inteiro, Floyd teve o pescoço esmagado contra o asfalto pelo joelho de um policial branco, Chauvin (nome de onde vem “chauvinista”, que estranha coincidência!). Foram nove longos minutos assistidos pelas TVs do mundo inteiro, o moribundo sussurrando uma frase que se tornaria lema de protestos: “I can’t breathe!” (“Não posso respirar!”). Outros policiais observavam, cúmplices de sádica tortura e premeditado assassinato.

Floyd tornou-se ícone de um novo movimento e palavra de ordem na luta de milhões de manifestantes pelo mundo. Nos EUA, chamou a atenção o grande número de jovens brancos que participaram dos protestos – um fenômeno, nas proporções em que aconteceu, se comparadas a manifestações anteriores. Houve alguns absurdos vandalismos, por radicais surgidos de uma ebulição estancada, mas os “riots” foram pacíficos.

Há um diferencial neste que foi mais um dos incontáveis assassinatos raciais pela polícia americana em décadas: uma amiga escritora bem lembrou a música “Ebony and Ivory”, “ébano e marfim”, de Paul McCartney: (negros e brancos) “que vivem juntos em perfeita harmonia”. Ébano e marfim, dois dos materiais usados nos talões dos melhores violinos: peça que retesa a crina e serve para o instrumentista manobrar a vareta, superando as mais intricadas passagens e suaves nuanças – em alusão poética).

Há também uma particularidade nessa amálgama de ébano e marfim a fazê-la tão especial; outra amiga, ex-jornalista da Veja, trouxe luz à questão. Na manifestação contra a violência de policiais brancos, todos estavam unidos, civilização contra a barbárie, tendo como bandeira de luta um crime racial cujos ecos repercutiram em protestos pelo mundo e até no Brasil. Racismo é muito mais do que ofender e humilhar negros, latinos e muçulmanos, é preteri-los nos empregos e oportunidades, é tratá-los como seres diferentes (daí o “black lives matter”, “vidas negras importam”).

Não ouvi o canto lamentoso “we shall overcome, someday” (“nós conquistaremos, um dia”) das marchas de um dos maiores líderes e oradores da história, Martin Luther King Jr., o homem do grande discurso “I had a dream”, “eu tive um sonho”. O ódio racial, fruto do segregacionismo americano e de tantos países, ressurge mais forte em razão da atual conjuntura política – o fascismo populista que toma corpo tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil. Racismo e fascismo, qual xifópagos unidos por um elo forjado em aço, é liga que deve ser rompida e ambos eliminados já, a qualquer custo.

Inegável que o acúmulo de tensões do isolamento social desses meses elevou a temperatura emocional ao vermelho nos EUA, cujo povo sofre com o avanço recorde da Covid-19. Multidões revoltadas, energias represadas até o limite, cortaram amarras em mais de 400 cidades em 50 dos estados americanos, furaram o cerco de quarentenas, barricadas, policiais armados e toques de recolher. E, mesmo após quase duas semanas, no dia 6, mais de um milhão marcharam pelo país.

O presidente americano vê trincar a maioria que o levaria de volta à Casa Branca, a única coisa que parece importar além de uma prepotente e inepta liderança. Com “America First”, ofende outras nações, eivado de radicalismos xenofóbicos e preconceituosos sob a égide da extrema direita, até a medievalesca Ku Klux Klan. Em busca de bodes expiatórios, Trump conclamou os governadores de seu país a combaterem com energia as manifestações.

Enquanto isso, o que acontecia no Brasil? Sergio Camargo, negro – necessário frisar -, nomeado presidente da Fundação Cultural Palmares, foi exonerado por uma ordem da Justiça, depois revogada. Novamente entronizado no cargo, o pivô da saída de Regina Duarte expressa-se não titular de um cargo, e menos ainda como um negro que dirige uma fundação que honra Zumbi dos Palmares, um quilombola assassinado no século 17. Camargo tornou-se porta-voz negro da direita branca radical e contumaz nos ataques aos seus irmãos de cor.

Em tom racista, julgando-se escudado pela cor da própria pele, agrediu: “Zumbi era um filho da puta que escravizava pretos”, “o movimento negro é escória maldita”, enquanto no mundo George Floyd se tornava símbolo da luta pela igualdade de direitos. A uma mãe de santo, parte da rica cultura afro-brasileira, Camargo referiu-se jocosamente como “macumbeira”, e que “macumbeiro não terá um centavo da autarquia” – frases amplamente noticiadas pela imprensa – como se o erário público fosse de seu bolso e a seu absurdo critério.

Andreia Sadi, da Globonews, disse na TV: “Sergio Camargo está no governo a despeito de suas falas. No momento em que o mundo se levanta contra o racismo, manter Camargo no cargo é avalizar suas declarações como política de governo”.

Juracy Magalhães, general-embaixador do Brasil nos EUA de Castelo Branco e Costa e Silva, proferiu uma frase-símbolo, desnudando a subserviência do Brasil de então: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Hoje, vivemos uma caricatura do modelo Trump, apesar de a nação americana ser amiga e não culpada como um todo pelos crimes raciais: há tantas coisas que poderiam nos servir de exemplo! Como, agora, a opção pela civilidade contra a barbárie e um racismo endêmico e belicoso.