Músicos: convivendo com as diferenças

A convivência diária entre os integrantes de uma orquestra, apesar de frequentemente permeada de neuroses, é social e musicalmente muito sadia. Pouco importam as intrigas de fundo de seção, discussões sobre salários, quem senta na frente ou atrás, as escorregadas do regente, o vestido da violoncelista e outros assuntos que sempre surgem, de uma ponta à outra do grupo. Tudo é parte do cotidiano, e justificável porque durante horas músicos trabalham, como outros poucos profissionais, em silêncio. Mas a própria natureza acústica dos instrumentos, a origem, a sonoridade e a aparência física estimulam certa competição, natural, entre os mais diversos deles.

As origens de cada um são diferentes, como vimos em artigo anterior. Discorri sobre as origens dos oboés, dos trombones e dos trompetes, em suas tarefas sociais. Mas a percussão teve origem nos tempos mais longínquos, e somente começou a ver o mundo das classes mais bem aquinhoadas por intermédio dos trovadores, entre outros, acompanhando grupos populares para deleite dos mais ricos. A trompa moderna teve origem em um instrumento empregado na caça, com seu tubo enrolado em uma única longa volta, para ser levada a cavalo “a tiracolo”, sendo executada com o sopro, ao tempo em que uma das mãos (não havia válvulas, como hoje) a segurava e a outra manobrava as rédeas do animal.

Entre os instrumentos de cordas que antecederam os nobres violinos de hoje, muito antes de aportarem na Europa Ocidental, trazidos pelos mouros, há os indianos e das culturas do Oriente Médio e Extremo Oriente. Naquelas plagas, cordas e arco ajudavam, entre outras coisas, na meditação sobre “ragas”, como fazia o “ravanastron”, tocado com arco, e o dedilhado “sitar”, indianos, elevando a alma e obedecendo a sistemas e princípios espirituais próprios.

O “rebab”, de onde a nossa rabeca, não aportou no Ocidente, como pensam muitos, pelas mãos poderosas do mercador veneziano Marco Polo (1252-1324), a quem se atribui a introdução na Europa da “pasta”, ou seja, macarrão, espaguete e suas variações. E nem foi o instrumento por ele entregue de mãos beijadas aos italianos, como muitas das boas invenções da vida foram. O primeiro destino foi a Península Ibérica, de onde, em sua longa ocupação pelos mouros (711-1492), foi enfim aproveitado pelos italianos, que no início do século 16 criaram instrumentos como o violino e sua família, e logo o aperfeiçoaram aos limites que o conhecemos hoje – e pouquíssimo, além do material das cordas, foi alterado. A uma arte de meio milênio que, tudo indica, pouco ou nada mudará tão cedo.

Quem observou com argúcia as diferenças e particularidades entre os músicos foi o cineasta Federico Felini, da terra de Francesca da Rimini (nome de uma cidade do nordeste da Itália), a jovem imortalizada pela ópera homônima de Tchaikovsky, sobre um dos cantos da “Divina Comédia”, de Dante. A visão do cineasta está no filme “Ensaio de Orquestra”, que recomendo, e nele Felini demonstra que cada músico considera o seu instrumento o mais importante, de som mais lindo: o contrabaixo tem a voz dos deuses, a flauta o som mais puro, o piano é o mais completo, o violoncelo tem a voz humana, cada um enaltecendo as qualidades e virtudes de sua escolha, frequentemente ironizando a dos colegas. Mas tudo isso, acredite, com amizade, coleguismo e, sempre, muito humor.

(Anedota: o que é que o dedo do violista tem em comum com um raio? É que nenhum deles cai duas vezes em um mesmo lugar. E há a charada: jogado do 20º andar de um prédio, qual chegaria primeiro ao chão, o violista ou a viola? A resposta maldosa é “quem se importa?” Democratizando, há a do trompista que, chegado à porta do Céu, aguardava seu julgamento. Junto a ele, estavam um agiota e um gigolô. Ao agiota, foi-lhe dito que praticou a usura, explorou, deixou famílias na pendura, sem carro e telefone. Inferno! Ao gigolô, que havia destruído famílias, levado boas meninas ao mau caminho, trazido doenças. Inferno! Na vez do trompista, sem pestanejar, o encarregado da triagem disse: “passa, pode ir para o Céu!” O gigolô e o agiota, inconformados, foram tomar satisfação. Ouviram que, se um estragou vidas e famílias, o outro as deixou na miséria. Mas aquele feliz trompista, que já longe subia, fora agraciado com o Paraíso porque, muito antes de morrer, havia cem músicos rezando por ele.)

E as diferenças entre o músico chamado erudito – expressão que não é usada em qualquer outro lugar no mundo, só aqui e não cabe explicar o porquê – e o chamado popular não fogem à regra, apesar de que há clássicos tão populares… (lembro três, a “Carmina Burana”, de Orff, o “Bolero”, de Ravel, e a “5ª Sinfonia”, de Beethoven!). Talvez o tipo de músico que vivia pelos cabarés da Lapa, o Beco das Garrafas de Copacabana, berço da bossa-nova ao vivo, não se preocupa em tocar de sandálias havaianas, meias brancas sem sapatos, como o baterista Charlie Watts, dos Rolling Stones, smoking cor de rosa ou furta-cor, camisa social ou de meia já rota. Transita pela boemia e gandaia com a mesma tranquilidade que, entrando pela porta dos fundos, convive com as castas mais abastadas – como os trovadores, de quem falei no início do artigo. O chamado “erudito”, ou melhor, clássico, padece das agruras da vida, assim como seu irmão das noites e shows. Divide com ele um bocado de dificuldades e preconceitos. Mas no palco, ah, na hora da estrela, abre-se em um rosário de felicidades!