Afeto ao tijolo e ao bolinho de frango

Raríssimas situações concluem-se em unanimidade. Não obstante, são reais, embora os exemplos se encontrem tão escassos quanto a preciosidade de seus objetos ou personalidades a configurá-los. Em Tatuí, o complexo da antiga fábrica São Martinho é uma inequívoca unanimidade.

Não há um tatuiano sequer – de fato e detentor de um mínimo de sensibilidade – que não se compadeça ao passar próximo a essa riqueza arquitetônica e testemunhar a agressão do tempo, que leva, literalmente, à ruína esse patrimônio predial e histórico.

Também ao longo do tempo, muitos e muitos já reclamaram, rogaram, lamentaram e, eventualmente, até, exageraram nos pedidos e críticas para que esse espaço venha a ser “salvo”.

Contudo, distante do que muitos podem pensar, o legado já débil em estrutura, embora imponente na superfície, não é de domínio público. Toda essa estrutura pertence a uma família, tal como a casa de todos nós.

Portanto, por mais magnífica que seja, a Prefeitura ou qualquer órgão não pode, simplesmente, tomar posse dessa estrutura – ainda que seja para “salvá-la”.

Os organismos pertinentes à preservação do patrimônio, como o Condephat, podem atuar, sendo decisivos para o que se chama de tombamento e, assim, em tese, salvaguardando o “bem de interesse cultural”.

E, com relação ao complexo da fábrica São Martinho, assim foi feito. Além disso, contudo, pouco ou nada pode-se realizar – salvos os incentivos fiscais para eventuais empreendimentos.

Por sua vez, também a ausência de ingenuidade leva à conclusão de que, por maiores que sejam esses incentivos, jamais eles chegarão perto de um mínimo do investimento necessário para se restaurar e, posteriormente, manter os patrimônios muito antigos, tal as edificações da São Martinho.

Para tanto, das duas uma: ou uma grande empresa entende que vale a pena o investimento e “paga pra ver” – como fez a Coop junto à antiga fábrica Santa Adélia (com evidente sucesso, aliás) -, ou somente o que a arquiteta especialista em preservação Fernanda Craveiro Cunha evidenciou em palestra na semana passada em Tatuí: é preciso afeto!

Isto implica na necessidade de o cidadão “sentir” como seu (dele, nosso) algo que, a princípio, seria público ou “dos outros”. Quando isto acontece, o resultado é o sentimento de “pertencimento”.

Ou seja, da mesma forma que não se joga no lixo um vestido de noiva usado pela avó – que passou para a mãe e, então, chega a indumentar a neta -, também não se deixa cair em escombros um edifício que fez parte da “nossa história”.

Esse patrimônio, mesmo que privado, por um aspecto – o legal -, por outro ângulo, “nos” pertence, a todos, especialmente porque, por ele, guardamos carinho, afeto e mais: orgulho!

Neste sentido, a atual política de preservação do patrimônio – de certa forma, renomeado de bem de interesse cultural – tem abarcado muito mais preciosidades, justamente porque escapa apenas aos edifícios, os “concretos”, alcançando os “abstratos”.

Daí advém, por exemplo, o reconhecimento do acarajé como um patrimônio nacional e baiano em particular, por meio de “tombamento” formal.

Não por outro motivo, Fernanda contou que, ao chegar em Tatuí, a primeira incursão in loco em nossa cultura nem foi um tour frente à São Martinho, mas a “degustação” do bolinho de frango.

“Isso (valorizar os patrimônios) é importante para vocês, que são de Tatuí. Isso é história da cidade”, comentou, relembrando que o bem “imaterial” também é importante. “Não só a culinária. Vocês (tatuianos) são a Capital da Música! Isso é patrimônio!”, sentenciou.

Na palestra, Fernanda “invocou” os tatuianos a “olharem para a cidade com mais orgulho, entendendo que cada um pode fazer a diferença”.

Para tanto, explicou existir, no meio de preservação, a prática compreendida como “zeladoria”. “Zelo é cuidar com afeto. Significa que vão olhar para a cidade de vocês de uma forma diferente”.

“Espero que vocês olhem para o que têm de memória, concreta ou não concreta, material ou imaterial da cidade, valorizem isso e tenham um baita de um orgulho”, frisou.

Por outro lado, Fernanda lembrou que os “novos usos” dos patrimônios prediais dependem de investimentos, como a utilização deles para empreendimentos comerciais.

Entre o bem de interesse “cair aos pedaços” por falta de manutenção ou ser objeto de alguma incorporação empresarial, Fernanda deixou evidente a preferência pela segunda opção. “O uso salva”, acentuou.

À reportagem, Fernanda, confessou ter ficado “encantada” com o complexo da São Martinho. “Já tinha visto fotos, mas não fazia a menor ideia da imensidão e da beleza desse conjunto. Fiquei muito impressionada”.

Por outro lado, Fernanda lembrou o fato de não caber ao Condephat a função de restaurar os patrimônios, mas o de validar e fiscalizar a manutenção dos bens de interesse culturais. “Esse dever é do proprietário”, reforçou.

Os obstáculos partem dessa realidade. “É difícil, porque são trabalhos onerosos. Restaurar é caro”, reconheceu. Inclusive, apontado ser assim “em todos os lugares do mundo”.

Por essa razão, Fernanda defende os incentivos. “Não é simples para as contas do poder público equalizar essas questões, mas esses incentivos são imprescindíveis para ajudar os proprietários na preservação”.

“A São Martinho, por exemplo, é muito grande. É oneroso, pela imensidão e pelo serviço altamente especializado (necessário para o restauro). Mas, é possível”, apontou a especialista.

Como exemplo dessa viabilidade, destacou o Pátio Cianê, em Sorocaba. “Houve um empreendimento que trouxe retorno financeiro e, em contrapartida, foram restaurados os galpões remanescentes. Trouxeram uso para esses galpões”.

“Todo munícipe de Sorocaba tem orgulho daquilo. Todo mundo visita. É lindo! Está vivo e tem uso!”, comemorou. “A meu ver, é primordial a manutenção e o uso, porque isso vai garantir que esses edifícios perdurem para as próximas gerações”.

Salvar os patrimônios que fazem parte da nossa história, da nossa identidade como povo, “agrega valor”, garante Fernanda. “A população abraça esses edifícios, porque se identifica com eles. Esse valor vai além da questão estética”.

Enfim, tombaram o acarajé! Oxalá tombem tudo o que de bom ainda resta em pé neste país e em nossa querida Capital da Música. Como afirmou a especialista, não é fácil, mas, certamente, tudo parte do quanto de ternura ainda temos por nossa cidade!