Henrique Autran Dourado
Sob o título “A pandemia fez alguns americanos repensarem o banho diário”, Maria Cramer, do The New York Times (Estadão, 17 de junho), escreveu sobre Robin Harper, da aprazível Martha’s Vineyard de Massachusetts, que apesar de ter crescido com o hábito do banho diário, na pandemia reduziu o costume para apenas uma vez por semana, coisa já comum no país. Daí se especula: aproveita-se da máscara alheia em seu favor? Frio ou preguiça? Diz ela que não: “Sou mãe, trabalho em horário integral, e é menos uma coisa que preciso fazer”, e lá é pleno verão, de onde se conclui que banhar-se passou a ser um ato dominical de relaxamento. Mas quantos hábitos e, vou além, vícios e sestros não surgiram ou mudaram com a vida nesses tempos?
Creio que com a máscara acontecem alguns. Se observarmos bem uma sessão da CPI da Covid, por exemplo, entre o presidente, senadores e inquiridos certo tipo de sestro passou a ser incorporado. Ora empurrando a máscara para cima do nariz, sem pensar, como o comendador da novela da TV faz com as pontas dos bigodes, ora ajustando-a no rosto desnecessariamente: um novo TOC (Transtorno Obsessivo-Compulsivo), como vários outros. Nada a dever aos gestos do fumante, a terapia do manusear um cigarro para ocupar as mãos – mesmo que sem o glamour do cachimbo e o charme de prepará-lo, culminando com a arte da baforada. Um dos meus TOCs é alternar as máscaras N95 e PFF2 no mancebo do quarto na hora em que chego em casa: a usada vai para baixo, a segunda sobe ao primeiro lugar para o dia seguinte, e daí em diante.
Bom hábito é evitar a aproximação de quem está sem máscara e só entrar em locais onde o uso do apetrecho é mandatório. Abusar do álcool em gel em estabelecimentos pode ser outro vício: reapertar o sifão do potinho várias vezes em minutos sem motivo aparente e, pior, ainda fazê-lo sem máscara ou no popular estilo “nariz exposé”, um contrassenso: o vírus penetra no corpo basicamente pelas vias respiratórias, axioma científico sobre o qual ninguém com juízo levanta dúvidas.
O número de mudanças no comportamento das pessoas, quando for objeto de estudos profundos e abalizados, pode assustar, incluídos os hábitos não visíveis, como pensamentos que confabulam nas cucas das pessoas, que cada vez falam menos. Devido ao isolamento, a comunicação oral teve redução considerável em boa parte da população. A maioria prefere “apps” em que se escreve quase em código; quando se grava, a conversa é truncada, é um de cada vez, falso diálogo sem interferências e apartes. E são vários softwares, como o WhatsApp e o Telegram, este último ilimitado e sem controle, parece que feito sob medida para os que frequentam os posts do chamado “gabinete do ódio”, dos milicianos e dos militantes das teclas que comandam manifestações e até arregimentam greves como a dos caminhoneiros – já anunciada. Como se não bastasse, entre os que contraíram o vírus tais sequelas são mais contundentes: no dia 18 de junho, seguinte àquele do artigo sobre o banho, o Estadão publicou matéria sob o título “Pela primeira vez, cientistas brasileiros descrevem como o coronavírus danifica as células do cérebro”, objeto de pesquisa realizada pela UFRJ, Fiocruz e Instituto D’Or sobre os danos do Sars-CoV-2 aos neurônios dos infectados. Pesquisas deverão mostrar como são as sequelas psiquiátricas e neurológicas e a resposta inflamatória sistêmica ao vírus. Nada, nada animador.
O ato de se alimentar passou, para muitos, de necessidade fisiológica – e do prazer hedonista de degustar – para o vício de comer em excesso e beliscar fora de hora, descontroladamente, convite masoquista ao sobrepeso. Além dessa ansiedade, há a angústia agregada pelo momento político atual: a comunicação passou a ser mais lacônica e agressiva, produto das elucubrações da “cabeça vazia, oficina do diabo”. Fala-se menos, escreve-se menos, estuda-se menos, lê-se menos, e seria duvidar do óbvio ou discutir o sexo dos anjos negar que teremos uma geração mais despreparada – com as exceções de praxe, os “escolhidos” que traçam seu caminho pelo mundo com enorme esforço, suas próprias réguas e compassos. A se projetar tal cenário muitas gerações para a frente, podemos imaginar, como em um filme de “sci-fi”, humanos com cérebros atrofiados e polegares avantajados, seguindo a máxima de Lamarck (1744-1829): “o uso desenvolve, o desuso atrofia”. São games, controles, apps, tudo o que se manobra com dois dedos e muito pouca massa cinzenta, ou seja, quase sem pensar.
No filme “Mudança de Hábito”, que dá título a este artigo (“Sister Act” de 1992), a atriz e apresentadora Whoopi Goldberg é a protagonista: uma “crooner” de cassino que viu um assassinato, como medida de proteção à testemunha vestiu-se de freira para, escondendo-se, aprontar mil entre as colegas de convento e a madre superiora, fazendo o público desatar a rir. A crooner-freira é a personagem da Whoopi, que, profissional, observa a trama acontecendo com seu aguçado espírito crítico. Uma diferença entre o “plot” do filme e as mudanças de hábitos na pandemia é que no segundo caso tudo acontece sem a consciência dos atores – 25% vítimas de sequelas físicas, além das citadas mentais – turbilhão neurológico e psiquiátrico ainda longe de ser qualificado e quantificado significativamente. Outra diferença é o significado da palavra hábito: neste artigo, falo de uso e costume; no filme, é veste religiosa. Ambos os hábitos podem ser mudados e trocados, sem fazer o monge.