Gentilezas, sorrisos, vacina, luz balão

Henrique Autran Dourado

Sexta-feira, 10 de dezembro. Depois de uma tentativa quatro dias antes que terminou frustrada pela busca por uma vaga para estacionar e uma longa fila, fui receber minha dose de reforço da vacina, dessa vez da Pfizer. O The Guardian publicou: cientistas descobriram que duas doses de AstraZeneca com complemento da americana praticamente garantem contra o ataque da desvairada cepa ômicron! Se necessário, que venha uma quarta dose. Estava decidido: ou ir ou ir.

Segunda tentativa. Fui ao ginásio Nebam Ayrton Senna, não por acaso nome de um de meus heróis, um vencedor. Mas ainda faltavam vagas para estacionar perto da escola, teria de andar muito e encarar uma rampa com bengala, minha companheira em terrenos irregulares, tanto no declive quanto no aclive. Com o carro, aproximei-me de um guarda municipal e bastou abrir a janela direita para que ele se aproximasse, solícito. Perguntei-lhe onde poderia estacionar, mostrei-lhe a bengala e ele, apontando para dois carros na diagonal, disse que eram de funcionários, só sairiam dali à tarde, e que eu parasse logo atrás. Satisfeito, estacionei de comprido, no sentido da rua. Já ia desligar a chave quando vi o mesmo guarda acenar, me chamando. Fui em frente e ele me disse acabou de sair um, poderia usar uma vaga na diagonal! Com reflexo de músico, bati palmas umas três vezes, em agradecimento. Que gentileza!

Consegui subir pela calçada até a entrada do ginásio. Desci a rampa me escorando na parede com a mão esquerda; na direta, a bengala mágica, tudo bem devagar. Cruzei com uma senhora de mais de 80 anos que subia e me perguntou se eu precisava de ajuda. Ela estava com um rapazinho em cujo braço se apoiava, que presumo seria seu neto. Não, obrigado, respondi, muito obrigado! Ela ainda deixou escapar um discreto “cuidado”! Cheguei no ginásio, metade das cadeiras ocupadas, nem me sentei, fui logo chamado por uma moça que estava na entrada. Ela me pediu que fosse direto a uma outra atendente, que, de pé com um microfone, anunciava os números das senhas na ordem sorteada, e encaminhou-me logo para a última mesa, vaga, onde um rapaz olhou meus documentos e preencheu a cartela, deixando-a pronta para a vacina. Dirigi-me a uma pequena fila de candidatos prontos para a inoculação e, mal cheguei, era minha vez.

Como aconteceu com todos os outros interlocutores, fui recebido com gentileza e sorrisos. A enfermeira preparou meu braço, e eu o relaxava lembrando as lições do livro “A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen”, do filósofo alemão Eugen Herrigel, professor universitário no Japão, que relata sua experiência com um mestre arqueiro budista: não é o braço que joga a seta, ele apenas a solta, como uma criança faz depois de atravessar uma rua com seu pai, deixando ir o dedo que o guiava. Herrigel soltou a flecha e acertou na mosca, num gesto sem ação física. Braço caído e absolutamente inerte, como eu ensinava na prática do arco de instrumentos musicais – está em meu livro “O Arco” (Vitale) -, nem senti a mão de fada da enfermeira que me aplicou a dose, para depois sorrir e dizer: prontinho, vacinado! Fiz o percurso de volta para o carro e, claro, a tradicional selfie para incentivo na rede social. Foi uma vitória entre gentilezas, sorrisos e amabilidades. Ganhei o dia.

Dia 24/04, da primeira dose da AstraZeneca. Fui para a praça Adelaide Guedes, e após uma hora na fila de automóveis cheguei ao drive-thru. Braço na janela, fui logo vacinado. Gentilezas da primeira atendente, que me orientou, e de uma simpática vacinadora. Uma ótima sensação porque, mesmo tendo sido vacinado na minha infância com as doses a que todos os brasileiros têm direito, era a minha primeira inoculação contra o famigerado vírus da Covid.

Dia 13/07, segunda dose conforme a cartela de vacinação. Novas instalações da Prefeitura de Tatuí – aliás, um belo prédio, então ainda por ser inaugurado, pessoas gentis e com sorrisos vincando suas máscaras e cantos dos olhos mostravam o local de cada vacina. Dirigi-me à da AstraZeneca e, feliz, recebi minha segunda cota. Misto de felicidade e alívio, minha proteção estava aumentando! Desta segunda vez, operação muito bem organizada cujo percurso não durou meia hora.

E que venha uma quarta dose de reforço, como apregoam alguns cientistas – estarei bem protegido, se não surgirem as reticências de uma nova cepa terrível. Mas essa proteção nunca será realmente efetivada sem que um contingente enorme também o faça – a imunização não é um capacete com máscara e tubo de oxigênio, como os dos pilotos de jatos supersônicos: ela precisa de todos, só funcionará para nos libertar com um mínimo de 70% dos cidadãos do mundo vacinados com duas doses – Tatuí já superou 73,5%! Os entraves são a indigência de certas regiões e de muitos países africanos; ou, nos EUA, de cidadãos “antivaxxers”: 22% da população!

Impossível esquecer “Tecendo a Manhã”, do poeta João Cabral, meu favorito ao lado do Drummond: “Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro, e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão”.