Antonio Stradivari (1644-1737) latinizava a assinatura no interior dos instrumentos: Antonius Stradiuarius. De Cremona, Itália, trata-se do plural de Stradivare, derivado de Stradivarto, variação Lombarda para Stradiere. Já a forma “Strada averta”, segundo o piemontês Artegiano, autor de uma lista de cidadãos da cidade até o ano 1300, seria, no dialeto cremonês, “strada aperta” – estrada aberta, em italiano. Nos assentamentos da Catedral de Cremona, em 30 de agosto de 1622, há registro do casamento de Alessandro, filho de Giulio Cesare Stradivari, e Anna, filha de Leonardo Moroni, que viriam a ser os pais de Antonio. (Sem prenotação de nascimento, há dúvidas sobre a naturalidade de Antonio, segundo Mandelli, pois seu primeiro casamento, com Francesca Ferraboschi, foi registrado tendo-o como residente na paróquia de Santa Cecilia¹).
O mais famoso luthier de todos os tempos só encontra rivalidade em Giuseppe Guarnieri, “Del Gesù” (1698-1744), preferido por alguns dos maiores solistas do instrumento, como Paganini e Vieuxtemps, devido ao som encorpado. Mas o mito Strad reveste-se de atmosfera mágica, com direito a lendas sobre um verniz secreto. Entre seus melhores violinos existentes, parte do total de 1.116 instrumentos, os mais valiosos têm “pedigree”. Levam o nome do primeiro proprietário, um nobre ou um virtuose. A isso se dedicou Toby Farber, relatando a origem, a vida e o percurso de cinco deles, os violinos Messias (“o ungido”, em aramaico), o Viotti, que já pertenceu ao colecionador Gerald Modern, a quem visitei em São Paulo e me deixou examinar um Nicolò Amati, que é tido como um dos mestres de Stradivari. Toby também discorreu sobre o Kevenhüller, o Paganini, o Lipinski e o cello Davidov².
Alguns instrumentos de Stradivari chamam a atenção pelos números estratosféricos atingidos nos leilões: em valores atualizados, R$ 17,10 milhões pelo “Hammer”, de que falarei mais adiante, em 2005; R$ 35,05 mi para o “Winton”, em 1999, e R$ 60,42 mi pelo “Lady Blunt”, em 2011, todos vendidos por leiloeiros famosos como Christie’s, Tarisio e Brompton’s. Mas o que faz desses instrumentos algo tão especial? Todos têm uma história, uma espécie de currículo: o primeiro possuidor, o ano em que foi criado, o estado de conservação e os grandes solistas que os tocaram.
Essas raridades, para alcançarem preços monumentais, possuem certificados que podem custar 3% do valor dado pelo especialista. Ou seja, a cada milhão de dólares, paga-se 30 mil. E no mercado de grandes violinos como os Strads não basta qualquer avaliador: só servem aqueles que podem conferir o certificado até a instrumentos que sequer possuem assinatura interna ou uma marca na voluta, extremidade do braço. Entre eles, Rembert Wurlitzer e Herrmann, um berlinense radicado nos EUA, de quem se conta que, enquanto atendia um cliente, viu Pinchas Zukerman chegar e abrir um estojo sobre o balcão, a dois metros dele. Exclamou: “Desde quando você tem um Strad?” Foram grandes nomes como esses, além de Jacques Français, de NY, Bein & Fushi, de Chicago, William Moennig, da Filadélfia e Henry Hill, Inglaterra, os certificadores acreditados. Com dois ou três desses “papers”, um Strad é genuíno para qualquer mercado! Só há um problema: esses especialistas estão todos mortos, não há mais palavra definitiva como a deles. (O Hammer, que mencionei anteriormente, tinha quatro desses documentos).
Após tornarem-se frequentes as demandas judiciais, os leiloeiros, sem terem a expertise para certificá-los, diante de instrumentos não bem documentados, usam de artifícios, anunciando-os como “ascribed to”, “attributed to” (“atribuído a”), “probably by” (provavelmente por). Assim, não correm o risco de sofrer processos milionários por venderem gato por lebre, ou, juridicamente falando, estelionato. Os valores dos instrumentos que não estão na lista especial dos registrados e certificados pelos grandes nomes não alçam voos mais altos. Quantos Strads passaram pelas mãos de Luigi Tarisio (1796-1854) e conde Cozio (1755-1840), dois dos maiores colecionadores e negociantes da história, donos de feitos espetaculares e lendários3?
As principais etiquetas e detalhes dos grandes luthiers foram catalogados por Lütgendorff4, assim como cada ciclo de instrumentos com as principais medidas e padrões Strad estão no livro de Hill’s & Sons (Op. cit), fora muito que já foi escrito sobre o assunto. Existe ainda em Londres um laboratório com amostras microscópicas de pó das madeiras utilizadas por Stradivari e outros grandes autores, modelos para formar uma espécie de “banco de DNAs” comparativos das origens, o que torna basicamente impossível introduzir “novos Strads” no mundo.
São incontáveis as cópias tchecas, alemãs ou, com muita sorte, as do francês Jean-Baptiste Vuillaume (1798-1875), talvez o maior copiador da história, que, utilizando a chamada “forma francesa”, bem mais rápida, chegou a produzir 6.000 instrumentos. Portanto, se você ganhou um Strad do porão da Nonna, ele não é um Stradivarius. Deve ser um instrumento de pouco ou quase nenhum valor.
(1) HILL, Henry, Arthur & Alfred. “Antonio Stradivari, His Life and Work”. NY: Dover, 1963. (2) FABER, Toby. “Stradivarius”. Trad. de Clovis Marques. Rio: Record, 2006 (3) SILVERMAN, William A. “The Violin Hunter”. London: W. Reeves, 1972. (4) LÜTTGENDORFF, Willibald. “Die Geige und Lautenmacher”. Frankfurt: Anftalt A. G., 1922.