Da reportagem
No sábado, 30 de julho, aconteceu em Tatuí o primeiro Festival Vozes da São Martinho, na rua Nhonhô da Botica, em frente à sede do antigo complexo fabril, a partir de iniciativa do grupo Coletivo São Martinho, composto por diversos agentes da sociedade civil, como professores, artistas, arquitetos, estudantes, entidades, escolas e demais interessados no tema da preservação.
Estiveram presentes o secretário da Cultura, Esporte, Turismo e Lazer, Cassiano Sinisgalli, os vereadores Eduardo Sallum (PT) e Fábio Villa Nova (PP), além do presidente do Conselho de Políticas Culturais, Davison Cardoso Pinheiro.
O evento contou com apresentações de variadas expressões artísticas, sessão de entrevistas filmadas e escritas com ex-funcionários da fábrica, comes e bebes, bazar e artesanato.
Houve, também, coleta de informações com o objetivo de “resgatar as memórias do local”, com fotos, depoimentos de ex-funcionários e pessoas que residem ou moraram nos arredores do complexo.
De acordo com a arquiteta, urbanista e uma das representantes do coletivo, fundado em 2021, Maíra de Camargo Barros, as pessoas se uniram de maneira espontânea e informal no intuito de iniciar um processo de escuta e registro das memórias afetivas acerca da fábrica São Martinho.
Maíra estuda o complexo têxtil há mais de dez anos. Suas pesquisas resultaram no livro “Fábrica São Martinho: Do Protagonismo Familiar ao Patrimônio Cultural”, lançado em abril deste ano.
Ela lembrou que, atualmente, a Companhia Têxtil São Martinho, fundada em 1881, é tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) desde 2007, a partir de solicitação da arquiteta tatuiana Ana Villanueva.
Na esfera federal, o tombamento foi solicitado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphaan) em 2019, e está em estudo, com processo aberto. O órgão aceitou dar início à análise do procedimento por meio de requerimento do vereador Sallum – representante do Movimento Popular Práxis.
Para Maíra, a primeira edição do festival teve grande êxito. “Os principais objetivos do coletivo eram torna-se mais conhecido, sensibilizando a população tatuiana para a causa, e começar a coleta de ‘memórias’ sobre a fábrica”, destacou.
“No sábado, recebemos expressivo número de pessoas, bem mais do que imaginávamos, as quais estavam muito interessadas em compartilhar suas vivências e debater as possibilidades de uso do espaço, o que nos enche de satisfação e entusiasmo”, complementou Maíra.
Segundo a arquiteta, estar na rua Nhonhô da Botica ajudou a promover o resgate das memórias. “Há pessoas que lembram com saudade do período em que trabalharam lá, atribuem o sucesso profissional que atingiram devido à experiência que adquiriram no complexo têxtil”, mencionou.
“Os ex-funcionários se lembraram das perdas de colegas em acidentes de trabalho, do grande número de trabalhadores que havia e, também, da dinâmica intensa de produção”, acrescentou a arquiteta.
As próximas iniciativas do coletivo ainda estão em estudo e sendo debatidas. “Nos próximos dias, nos reuniremos para fazer um balanço da primeira edição do festival e traçar novas metas”, completou Maíra.
Para a gestora em produções de artes visuais Carmen Brigida Negrão, o evento fez com que “o resgate das memórias afetivas fosse intenso junto aos ex-trabalhadores da fábrica”.
“Uma pessoa me contou que sua mãe ficou muito mal depois que as atividades da São Martinho foram finalizadas, como se fosse um luto. O barulho da fábrica se tornou rotina na vida dessas pessoas”, salientou Carmen.
Ela ressaltou o papel da São Martinho no desenvolvimento de Tatuí. “O complexo gerou muitos empregos, virou uma referência. Quem trabalhava nela sentia orgulho. Eram anos pujantes da industrialização na região, e isso mexe com a memória dos tatuianos que vivenciaram todo esse processo”, pontuou a gestora.
“Parabenizo a todos pelo empenho de cada um que está construindo esse inventário participativo. Só podemos olhar adiante e fazer um futuro diferente e melhor preservando nosso passado, nossa história”, disse Sallum.
Segundo o vereador, a iniciativa de requerer o tombamento a nível federal deu vida a um projeto da sociedade civil que visa preservar não só a parte física, mas também as memórias e lembranças de todos os tatuianos que tiveram relação com a São Martinho.
Sallum relembrou que Tatuí foi uma das primeiras cidades a libertar o povo escravizado antes mesmo da Lei Áurea. “Não fazia sentido na cidade ter escravos em meio a um apogeu industrial”, enfatizou. O vereador completou dizendo que Martinho Guedes distribuiu os grãos de algodão que trouxe da Europa entre os agricultores locais, ensinou-lhes o manejo do plantio e dividiu os lucros da produção.
A O Progresso de Tatuí, o aposentado João Batista Xavier da Silva contou um pouco sobre a história de quando trabalhou no complexo têxtil, em 1969.
Silva começou a atuar na sala das maçaroqueiras, que tinha a função de reduzir a embalagem de material, estirar a fita, afinar o produto e paralelizar ainda mais as fibras e aplicar a pré-torção.
“Tenho boas lembranças daquela época, pois a São Martinho estava em pleno funcionamento. Era um orgulho para a cidade”, contou Xavier da Silva. Para ele, “a fábrica foi importante, pois gerou muitos empregos e fez com que os funcionários crescessem, tendo uma vida corrida e digna”.
“Fiz grandes amigos naquela época. Alguns, infelizmente, já morreram. Gostaria que estivessem aqui para ver que há pessoas interessadas na restauração do prédio”, disse Xavier da Silva.
Segundo o aposentado, os pais e tios dele trabalharam no auge da produção da São Martinho, nas décadas de 20 a 50. “Cresci correndo e brincando pelas ruas aos arredores dela e no jardim, nas palmeiras”, relembrou.
A partir e 1974, Xavier da Silva passou a morar na rua São Martinho e viu de frente a decadência do complexo, após a desativação. “Dá dó ver como se encontram atualmente as estruturas da fábrica. Quando as memórias ressurgem e vejo os telhados caídos, chego a me emocionar”, mencionou.
Para ele, o trabalho idealizado pelo coletivo veio em boa hora, pois possibilita dar voz a quem participou das histórias vividas dentro do complexo. “Estou muito contente de estar neste evento. Me sinto uma pessoa importante por dar meu depoimento a quem ainda não tinha nascido quando a fábrica vivia seus bons tempos”, frisou Xavier da Silva.
Sobre o que gostaria que a fábrica se transformasse, Xavier da Silva disse sonhar em ver o complexo se tornando shopping, com um espaço cultural, que abrangesse a história da São Martinho “e gerasse mais empregos para o povo da cidade, sem descaracterizar o prédio”.