Covid-19: filhos, melhor não tê-los?

Henrique Autran Dourado

No dia 2/11, o Estadão informou que o FDA (Food and Drug Administration) e o CDC (Center for Disease Control) liberaram a vacinação de 28 milhões de crianças de 5 a 11 anos, dando aval para que sejam imunizadas com duas doses em intervalo de três semanas, com apenas um terço do conteúdo da vacina dos adultos. Nos EUA, foram 1,9 milhão de casos de Covid infantil e 8.300 hospitalizações. Com 90,7% de eficácia, a vacina da Covid infantil traz outros dois benefícios: a volta segura às aulas e a diminuição da transmissão da doença para os familiares das crianças, com reflexos na população como um todo.

A Inglaterra adotou medidas específicas para escolas: faz testes nas crianças e, semanalmente, nos pais. Minha filha, residente em Londres, recebe também, pelo correio, um kit com “swab” – aqui, “cotonete” –, usado para colher material do filho, que deve ser devolvido ao próprio carteiro. Tudo de graça, pelo NHS, claro. As crianças nas escolas são separadas em grupos chamados“bolhas”, para que, em caso de infecção, não haja perda de controle e transmissão do vírus entre todos os alunos. Cada grupo de pais pertence à sua “bolha de proteção”, e não há contato pessoal entre os membros dos grupos.  Na eventualidade de uma infecção, não será necessário fechar a escola inteira, as medidas de controle ficam restritas às daquela “bolha” específica. Meu neto Thomas, 7, passa pelos testes de “swab” e o convívio com essas medidas sanitárias com tranquilidade.

Enquanto isso, no Brasil, a sanha dos militantes negacionistas não conhece limites. A Anvisa(Agência Nacional de Vigilância Sanitária) revelou ter recebido duas ameaças eletrônicas,inclusive de morte, contra “servidores, diretores, funcionários terceirizados e seus familiares”, caso seja aprovada a vacina contra a Covid-19 em crianças, embora ainda não conste oficialmente o pedido da fabricante (UOL, 3/11/21). No dia 5/11, a Agência, após uma terceira ameaça, pede proteção policial para seus membros. As coações seriam uma reação ao anúncio da Pfizer de que vai pedir à Anvisa autorização para vacinação na faixa de 5 a 11 anos, como nos EUA.A documentação será entregue pela empresa ainda no mês de novembro.

Não se sabe o que norteia as ações dessa militância fanatizada, nem seu potencial. Sabe-se apenas que ela afina perfeitamente com muitos outros ataques contra o progresso da campanha.É sempre bom lembrar o que foram as vacinas Salk e Sabin contra a pólio: o que teria sido do nosso país sem as vacinações em massa e até compulsórias para crianças em idade escolar? Uma população com grande número de crianças e adultos paralíticos, tragédia sem fim. O mote “vacina mata” dos aguerridos negativistas é um estúpido resquício de preconceitos obscuros do passado que devem ser eliminados. Segundo o UOL, EUA, Camboja, Cuba, China, Israel e Emirados Árabes já estão em franco processo de vacinação infantil. Outros estão em fase de liberação após análises técnicas, mas…Países como o Brasil ainda protelam, sendo que as forças mais retrógradas, a começar pelo chefe da Nação, ainda apelam contra máscaras e vacinas.

Em sua live do dia 21/10, o presidente da República afirmou, baseado em um suposto relatório publicado no Reino Unido, que “indivíduos totalmente imunizados estão desenvolvendo mais facilmente a Aids”. A publicação britânica era fake, mas caiu como uma luva na cruzada antivacina presidencial, que aliás está sendo investigada. Não foi apenas o uso irresponsável de uma notícia sem que ao menos fosse checada a veracidade da informação – muito além disso, estimulou-se mais uma crença absurda contra a inoculação.

O que é um ano em nossas vidas? Para os adultos, no mais das vezes é apenas um, passa como um jato no céu, como este ano que já se vai. Porém, na idade de 5 a 11, é quando se dá a formação do indivíduo, sua socialização com seus pares, a consolidação da leitura e da escrita, o desenvolvimento das habilidades motoras e do raciocínio. Mais ainda, é por volta dos sete anos que, segundo Piaget, na segunda e terceira fases do desenvolvimento cognitivo é que se dá uma transformação fundamental para as crianças: a passagem da visão sincrética do mundo e das coisas para outra, a analítica, quando elas começam a pensar mais objetiva e criticamente. Este é o ponto. A perda do aprendizado regular e do convívio social traz prejuízo aos pequenos, e a vacinação da faixa 5-11 uma segurança enorme para o convívio escolar.

Se o obscurantismo dos “arautos do contra”, dos apóstolos da mentira,dos desagregadores da sociedade,é uma arma perigosa -como aliás todas as outras -, cercear o acesso das crianças às aulas é uma grave ameaça armada. Entre as camadas mais carentes de informação, a investida negacionista é como outra doença – conheço dois casos de não vacinação ou desistência da segunda dose por causa da ignorância estimulada por maldades como esta mais recente, que virou, trocando em miúdos, “vacina da Covid dá Aids”.

“Filhos…Filhos? / Melhor não tê-los! / Mas se não os temos / como sabê-los?”, filosofou Vinicius de Moraes em seu “Poema Enjoadinho”. Preferi tê-los, e até hoje, já grandinhos, cuido para merecê-los. Não estão mais na idade do desenvolvimento cognitivo de que falou Piaget, e cada um toca a vida a seu modo: à americana, à inglesa ou aqui, com toda assepsia no laboratório ou em home office. Mas, seguramente, se fossem pequenos, correria a vaciná-los, rumo à oficina de bons cidadãos, que tanta falta faz: a escola!