Henrique Autran Dourado
Há um dito inglês bastante popular: “Cavalos selvagens não poderiam me arrastar daqui” (“Wild horses couldn’t drag me away”), com o sentido de que nada, força alguma tiraria de onde está a pessoa que fala. Quem já viu, no prado ou no cinema, cavalos selvagens em disparada ou empinando sobre as patas traseiras aquela massa de músculos, animais lindos de se ver, sabe do que falo. A expressão deu o mote para que os Rolling Stones compusessem uma bela (embora tristíssima) música sobre o tema, “Wild Horses”, sobre as dores de um amor e cavalos selvagens. A frase pode ser entendida como “nada me arrasta daqui”, e em sentido estrito, “tenho os pés fincados neste local”. Nesse aspecto, “aqui é o meu lugar”, referindo-se a um rincão, região ou estado. No Brasil, o apelo seria o mesmo do americano: a terra em que se nasceu, que se adotou, aquela onde se viveu, cresceu, enfim, conheceu os costumes e, deste modo, sorveu a cultura local e sua culinária, jeito de se vestir, o sotaque, o dialeto. Em todos os lugares, fala-se de um apego muito especial: os rios da terra no sangue das veias e os pés no barro do chão.
Curiosamente, mesmo havendo um apelo geográfico, pode acontecer de o sujeito ser levado por “cavalos selvagens” a outro lugar, longe da região onde nasceu. Bons exemplos são Villa-Lobos e seu “Trenzinho do Caipira”, cultura distante de seu Rio de Janeiro natal; o norte-americano Aaron Copland com seu “Apalachian Springs” e Antonín Dvorák, nascido na Boêmia do Império Austríaco, hoje República Tcheca, mantendo o vigor de suas raízes no coração, onde quer que trabalhasse, a exemplo das “Danças Eslavas”. Assim como muitos outros compositores, seja lá onde estivessem também estaria a cultura de suas origens, base de sua formação. Em nossa música popular, Gilberto Gil canta a Bahia por atavismo em todos os cantos, enquanto Belchior e Fagner carregam seu Ceará pelos lugares que adotaram. O mesmo aconteceu com bluesmen e cantores folk americanos, e Bob Dylan seria um ótimo exemplo. Ainda pensando nas artes, temos o paulista Candido Portinari, que pintava sofridos retirantes nordestinos, sem esquecer a também paulista Tarsila do Amaral, cujas pinceladas modernistas foram do interior à metrópole das chaminés de fábricas e seus operários, espremidos entre muros.
Parece que quanto mais se vive, mais a gente se espalha, e o último lugar onde se vive, que é onde se está, é a outra ponta do torrão natal. Vemos “cavalos selvagens” até que a vida nos cerque e nos conduza para outro lugar, enquanto nossos corações deixam um pedacinho ali, outro acolá, e levam consigo um pouco dos caminhos que trilhamos. Difícil esconder de nós mesmos o tanto que acumulamos na estrada, melhor é rasgar a cortina e mergulhar na riqueza desses lugares. Os velhos Mutantes da Pompeia paulistana cantavam com tanta graça, com a brilhante e saudosa Rita Lee à frente, um futuro intergaláctico (“Dois Mil e Um”): “Astronauta libertado / minha vida me ultrapassa / em qualquer rota que eu faça” – com voz de matuto forçada (ave Rita, salve artista cosmopolita).
Há, sim, os que nem cavalos selvagens arrastariam de seus lugares a troco de nada, parecem fincados na origem e destino, são parte de seu chão, e cantam, contam, pintam sua história. Os artistas de raiz, distantes dos “spotlights” dos estúdios de TV, são estranhos à superficialidade das telas coloridas, precisam sentir com o tato o barro, a terra e o cheiro de suas nascenças, suas andanças, suas vivenças.
Conheci bem o cururu, que é a cantoria do Médio Tietê, desafio paulista com rima de santo e viola ponteando o improviso. Foi nas plagas do cururu que compreendi uma nova universalidade. Aprendi, às vezes surpreso com as rimas de “repente”: somos astronautas caipiras tal qual cantou Rita Lee, na velocidade da luz. Li muito Mário de Andrade, que, embora cidadão urbano por excelência, ensinava seus alunos, como o tieteense Camargo Guarnieri, que é nas raízes que se encontra o alimento da criação. Assim como a turma de Cornélio Pires, jornalista também de Tietê, que trouxe a linguagem caipira mais raiz à exposição como verdadeiro gênero musical. (Curioso, não se sabe se Cornélio (1884) e Guarnieri (1907) sequer se conheceram, há um lapso de tempo e de idade desde a ida do primeiro para São Paulo, em 1914. Salvo uma convivência que não houve, ambos beberam da mesma fonte, pisaram o mesmo barreiro).
Meia volta ao cururu: quem me estimulou no assunto foi o grande e saudoso Osvaldo Lacerda, que chegou a me mandar cartões sobre os ensinamentos do Mário de Andrade: o uso dos elementos de raiz na música de concerto – prática levada à risca pelo mestre Guarnieri. Agora veja, esse tríptico de raiz-concerto, Andrade-Guarnieri-Lacerda, que foi o grande laço nacionalista da música do século passado, respirou a brisa do Médio Tietê, e também Villa-Lobos viu a fumaça do trem em sua excursão musical pela Estrada de Ferro Sorocabana.
É aqui que eu amarro meus cavalos, neste ponto do texto e da vida. E se assim o faço é porque me afeiçoei pela gente da região e me apaixonei por sua música, que tem jesuítas, indígenas, tropeiros, catequistas. Conheci gente como o canturião José Pinto, poeta inspirado e de mão cheia, o Josué, jeito bonachão tocando aquela viola que chamo “de arrimo”. É a eles que dedico este texto, em nome de todos os cururueiros. Sejam mais fortes que cavalos selvagens, e que rimas e carreiras continuem a florescer no chão por onde passem e cantem.