Henrique Autran Dourado
Barbaridade, de onde a interjeição gaúcha de espanto ou surpresa “bah!”, tem diversos significados. Segundo o Houaiss, pode ser um “ato próprio de bárbaro”, “crueldade, desumanidade”, ou “em extremo desacordo com a lógica, com as normas”, ou ainda “erro crasso de linguagem e escrita”. Remete também a barbárie, selvageria. Na gramática, consiste no “uso sistemático de formas vocabulares inexistentes (…) por parte de falantes que não a dominam” (N.: a norma padrão da língua). Em inglês, “barbarism” indica tanto a “palavra, expressão ou pronúncia não convencional quanto o período de migração europeu que viu a queda do Império Romano e a ocupação de vastos territórios por diversas tribos” (alemães, hunos, búlgaros, húngaros e vândalos – germânicos do sul da Polônia, daí “vandalismo”). Trata-se de migrações e invasões em massa (HALSALL, Guy. “Barbarian Migrations and the Roman West”. Cambridge: CUP, 2007).
O sentido dessas palavras no contexto atual refere-se a pessoas animalescas, sanguinárias, mesmo quando em sentido figurado, um cruzamento idiomático e histórico – “crossover”, para usar uma palavra da moda, lembrando o cartunista Laerte, que se veste como mulher. Expressões eivadas do horror de alguns dos períodos mais terríveis por que a humanidade passou – sangue derramado, atrocidades, barbaridade, barbarismo, bárbaros e ações bestiais de várias épocas.
Bárbara, contudo, é também um lindo nome feminino que nada tem a ver com isso. Surge nas artes em diversos momentos, como no histórico musical de Chico Buarque e Ruy Guerra intitulado “Calabar, o Elogio da Traição” (1973), que conta da vida de Domingos Fernandes Calabar, senhor de engenho de Pernambuco que se aliou aos holandeses traindo Portugal. Bárbara, esposa de Calabar, é quem conta a história, e dá título a uma das canções da peça, “Cala a boca, Bárbara”: “Ele sabe dos caminhos dessa minha terra / no meu corpo se escondeu, minhas matas percorreu / os meus rios, os meus braços (…) / Nas bandeiras, bons lençóis / nas trincheiras, quantos ais, ai”.
O nome é originário do latim “barbara”, “barbarus”, significando estrangeiro, mulheres que não eram romanas, e vem do grego: “forasteiro” (FERREIRA, Moacyr da Costa. “Dicionário Poliglótico de Nomes”. SP: Edicon, 1996). O dia 4 de dezembro é consagrado a Santa Bárbara, nascida em 280 d.C. na Turquia e convertida ao cristianismo. O pai dela, Dioscorus, seviciou-a, degolou-a e a entregou aos romanos. Diz a lenda que, ao cair sua cabeça, os céus trovejaram; por isso, é associada aos trovões, e protetora dos que lidam com fogo, como os bombeiros. Na Umbanda, parte que é do riquíssimo sincretismo religioso brasileiro, Santa Bárbara representa o orixá Iansã, mulher poderosa, deusa do fogo e dos trovões, vendavais e furacões. Como outros santos católicos, ela escondia da Casa Grande as práticas da cultura religiosa trazida pelos africanos escravizados, resguardando-se para não serem punidos.
Em “Arrastão” (1965), Vinicius de Moraes, com música de Edu Lobo, evoca a santa em meio a outras entidades da Umbanda: “Olha o arrastão entrando no mar sem fim / É meu irmão me traz Iemanjá pra mim / Minha Santa Bárbara / me abençoai / Quero me casar com Janaína”. Iemanjá é representada vestida como Nossa Senhora, de azul e branco ou azul claro.
Muitos lugares homenageiam a mártir turca: de Santa Bárbara do Leste, cidade mineira, à paulista Santa Bárbara d’Oeste e Santa Barbara, na Califórnia americana. Há as que fizeram parte de nossas juventudes, como Barbara Streisand, cantora e atriz, a soprano Barbara Hendricks, ambas americanas, sem esquecer Bárbara Heliodora, talvez a maior especialista em Shakespeare que o Brasil já teve (ouvi-la discorrer sobre o bardo inglês era como penetrar em um mundo de sonhos, amores, dramas, devaneios e poesia).
Saindo da arte, a pergunta: o que teria sido aquele bando que invadiu o Capitólio americano em 6 de janeiro de 2021, convulsionando o resultado das eleições dos EUA, tentando derrubar um pleito legítimo e uma democracia sólida, atrás de palavras de ordem do candidato preterido, Donald Trump? Na horda, muitos loucos trajados como vikings e hunos quebraram vidraças, portas e móveis gritando slogans… Ou seja, corja de bárbaros na acepção “crossover” da palavra. Um bando de alucinados, arriscando todos a um banho de sangue onde afundar a democracia mais sólida do planeta! Foi um ato de barbárie, insano e irresponsável. Felizmente, parece que o país superou o trauma, manteve intactas suas instituições e tem superado, até aqui, incursões pontuais de radicais fascistas e neonazistas.
No próximo dia 11 de agosto, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da USP, haverá um evento pacífico liderado por algumas das grandes cabeças pensantes do país, à frente de insuspeitas entidades apartidárias, empresários, líderes sindicais, estudantes, representantes da sociedade civil de todos os credos, raças e orientações políticas. A convocação foi feita por meio do manifesto intitulado “Carta às brasileiras e brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!”, relembrando 1977, quando Gofredo da Silva Telles, ilustre jurista e professor daquela faculdade, leu sua “Carta aos Brasileiros”. Nela, denunciava “a ilegitimidade do então governo militar e o estado de exceção em que vivíamos”, celebrando os 150 anos da criação dos primeiros cursos de Direito no Brasil. Mais uma vez, a carta de 2022 será contra a barbárie, pela democracia.