As cartas não mentem, jamais

Henrique Autran Dourado

Na história do Brasil, cartas têm registrado momentos da maior importância. Desde a de Pero Vaz de Caminha, primeira delas e marco da chegada portuguesa com impressões que ele não sabia se de uma simples ilha. Gaspar de Lemos zarpou rumo a Portugal, no dia 1º de maio de 1500, para entregá-la ao rei D. Manuel I: “Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho (…) Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas, não pareciam mal”. 1º de maio de 1943: inspirado na “Carta del Lavoro” (1927) de Mussolini, Getúlio Vargas baixou o decreto-lei nº 5.452, da nova legislação trabalhista brasileira, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que após talhos e retalhos deu garantias básicas ao trabalhador – ou ao menos aos que lograrem ter seu registro efetuado.

Porém, outra carta, de 23/08/1954, daqui a poucos dias, completará 68 anos, o marco histórico final do nome de Getúlio: sua Carta-testamento, que falava das “forças e interesses contra o povo”, encerrando-a com o histórico “dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história”. Matou-se logo depois com um tiro no peito. Foi uma carta sem destinatário outro que não os anais históricos, simbólica como a perfuração do projétil que manchou de sangue o bolso do paletó de listras de seu pijama. (Com seu estilo próprio, reservando-se uma vida de bon-vivant boêmio, Villa-Lobos, um dos maiores compositores de nossa história, vaidosamente declarou suas obras “cartas que escrevi para a posteridade, sem esperar resposta” – frase gravada na lápide da sepultura onde jaz, até hoje, no Cemitério São João Batista do Rio de Janeiro. Buscou, com aquela frase, que sua obra o levasse à imortalidade. Triunfou, mas não como já é comum nos dias de hoje com artistas de teatro e músicos ingressando na Academia Brasileira de Letras, mas criando ele próprio a Academia Brasileira de Música – tendo como modelos a Academia Francesa, fundada em 1635, da qual ele próprio foi integrante, e a própria ABL, de 1896.)

Entre 1852 e 1853, foram publicadas no Günther Fröbel germânico cartas de alemães que vieram trabalhar nas fazendas de café do Rio de Janeiro, incentivando a emigração para a dura labuta na colheita em sistema coparticipativo, substituindo o trabalho escravo que já não rendia, ante sua inevitável abolição, em 1888. E o faziam liderados até por grandes latifundiários e políticos, como o senador Vergueiro, da fazenda Ibicaba. Três décadas após a Independência e 35 antes da Lei Áurea, o sistema caiu no desagrado dos europeus. Cinco anos depois, a Prússia tornaria crime as publicações e a intermediação de emigrantes para o Brasil. Embora pouco divulgadas, as ações de colonos alemães e suíços no país mostravam a urgente necessidade de reorganização do Estado brasileiro.

Assinada pelos barões ingleses e o rei John, a Carta Magna (do latim “magna charta”, Grande Carta), do princípio do século 13, estabelecia os pilares do constitucionalismo. A primeira versão em solo brasileiro veio apenas em 1548, pelo Governador-Geral, seguindo-se a Luso-Brasileira de 1822, que não vingou, a de 1824 e, finalmente, a de 1891, já na República. A de 1934 foi promulgada pelo Congresso a fim de acabar com o poder getulista de governar sozinho por decretos e decretos-leis. Vieram as de 1937 e 1946, até que, já dentro da ditadura de 64, com a oposição isolada pelo AI-4, um Congresso manietado pela ditadura elaborou a de 1967, que prenunciava o AI-5, para concentrar mais ainda o poder nas mãos dos ditadores, e cujos preceitos por eles ditos constitucionais duraram quase duas décadas (o texto foi revisado em 1969).

Finalmente, após muita luta e encerrando o Estado de exceção, a chamada Constituição Cidadã de 1988 estabeleceu os reais princípios do Estado Democrático de Direito: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (Art. 1º, parágrafo único). Foi em defesa deste histórico documento que, no dia 11 de agosto de 2022, movimentos de professores, estudantes, empresários, trabalhadores, intelectuais e artistas em 25 universidades e 65 municípios, incluindo todas as capitais, aglutinaram milhares de pessoas nas ruas, reverberando as manifestações da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da USP, cuja Carta às Brasileiras e Brasileiros ainda naquele mesmo dia completou 1 milhão de assinaturas. Foi muito além da defesa intransigente das urnas eletrônicas, uma das grandes conquistas brasileiras!

(Em 1977, o ilustre professor Goffredo da Silva Telles, no “território livre” das arcadas da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – para acomodar toda aquela gente -, dirigiu-se ao púlpito para a leitura da Carta aos Brasileiros. Enquanto Goffredo subia à tribuna, conversas e burburinhos se calaram. As 14 páginas foram ouvidas sob tensão, pois ainda vivíamos sob um regime de força, enquanto o orador clamava “contra a opressão de todas as ditaduras”. Em nome dos juristas, advogados e estudantes presentes, exclamou “A consciência jurídica do Brasil quer uma cousa só: o Estado de Direito, já!”)

Defender a nossa Carta, com C maiúsculo, é dever de todos os brasileiros. Juntos, caberá repetirmos as palavras finais do documento da USP e torná-las nossa bandeira, junto ao auriverde pendão da esperança: “… em vigília cívica contra as tentativas de rupturas, bradamos de forma uníssona: Estado Democrático de Direito Sempre!!!!”