Arnaldo Jabor e o imbróglio colegial

Henrique Autran Dourado

Arnaldo Jabor estudou em um colégio de padres no Rio de Janeiro onde me orgulho de também ter estudado. Bem mais velho do que eu – aliás, quando ingressei, no ginásio, ele já o havia deixado com outros de seu tempo, como Cacá Diegues, outro futuro cineasta, e Edu Lobo. Minha turma veio anos depois. Ainda colegiais, vimos Jabor se envolver com a turma do Cinema Novo, no rastro da Nouvelle Vague francesa. Aos 24 anos, um tanto precocemente, já estreava como cineasta com um curta-metragem, “Opinião Pública”. Se nunca nos encontramos em meus tempos de colégio, dada a diferença de idade, anos depois foram duas vezes, em ocasiões fortuitas – uma delas, no tradicional Bar Luiz (de 1887!), reduto da turma cult em que música, teatro, literatura e cinema passeavam livres entre as mesas. Fui apresentado ao Jabor tendo como “gancho” nossa origem escolar comum, o que gerou assunto com facilidade, são tempos de que nenhum ex-aluno vai se esquecer. Outra foi em uma peça do Plínio Marcos, não me lembro qual. Como disse, foram encontros fortuitos e rápidos.

Um punhado de anos depois, já de volta dos EUA, eu havia ido ao Rio de Janeiro visitar meus pais. Estava no Aeroporto Santos Dumont aguardando o voo para São Paulo (o que reservara havia sido cancelado). Sentei-me no saguão de espera e um sujeito alto, coisa de 1,90 m, aboletou-se duas poltronas à esquerda. Não resisti, virei-me e perguntei: olá, Jabor, lembra de mim? Cenho franzido, disse sim, mas parecia não localizar em sua memória quem eu era e de onde. Citei assuntos passados e do colégio, e a conversa logo engatou.

Jabor vinha sendo atacado aqui e ali, alvo de um movimento ultraconservador até do próprio colégio – em um de seus artigos ele havia tocado em um assunto tabu na sociedade brasileira: padres pedófilos. Em direção oposta, hoje o papa Francisco diz que a pedofilia é um ato cruel, e que a Igreja como um todo deve pedir perdão (Isto É, 18/09/21). Lasquei no Jabor uma direta perguntando: quer dizer que você conheceu o padre João Bocão? Ele deu um salto teatral da cadeira e se colocou à minha frente, fazendo um gesto de tesoura com os braços cruzados e dizendo alto: comigo, não! E perguntou-me se eu havia conhecido aquela pessoa folclórica, eu disse que sim, mas que o velho padre então se resumia a fazer para os alunos as mágicas que trazia nos bolsos da batina, objetos como bolinhas de espuma, lenços, cartas de baralho – ele já era assunto comentado fazia tempo.

Ato contínuo, Jabor me chamou para um café, dizendo eu pago! com aquela ironia meio espalhafatosa que o tornou tão peculiar. Sempre com jeito teatral, colocou a mão em meu ombro e disse: você vai ser minha testemunha! Eu ri, dizendo que não havia visto nada, mas que, claro, sabia como todos quem fora o tal de João Bocão – um diálogo para lá de surreal. E assim terminamos nosso café, esticando o papo até a fila que já aguardava a chamada para o voo. Uma figura extremamente divertida, de inteligência fora do comum, um papo daqueles que se diz “para uma viagem de circunavegação” alternando política e o que estávamos fazendo da vida – ele em uma espécie de hiato em sua filmografia, depois do sucesso de “Eu te Amo”. Mas escrevia para jornais e TVs, disparando a torto e a direito, da direita à esquerda, palavras às vezes amargas mas sempre carregadas de uma ironia que tinha o dom de envolver as pessoas.

O assunto João Bocão rendera pano pra manga: alguns pais da classe média de cara amarrada e o colégio, excelente mas muito conservador, fechando-se em copas no assunto, para que não resvalasse em sua reputação. Nunca teriam levado os respingos do affaire João Bocão se tivessem ao menos dado uma resposta à sociedade, como faz exemplarmente o papa Francisco, à frente da Igreja como um todo. Foi assunto de bastidores, piadas nos bares, sussurros nas clausuras, poderia ter sido um trunfo se averiguado e, se constatado, punido – se não, amplamente divulgado. Jabor, polemista, escreveu, para O Tempo (19/12/11), “Só os anjos não têm sexo”, em que sustenta que a pedofilia na Igreja é resultado direto do celibato, quando o religioso, sem conseguir conter seus instintos orando, se deixa cair em tentação. Vê na lembrança do beija-mão na entrada do colégio uma cena em que signos e símbolos da paternal hierarquia religiosa envolvem um clima propício, segundo ele, para esses desvios.

O cineasta não descansou, rodou um filme que contou essa memória. O cenário ideal fora o então desativado Colégio Sagrado Coração de Jesus, que já servira de set de produções diversas, como “Cazuza”. Para as externas, escolheu Marechal Hermes, bairro da Zona Norte, região de Madureira, onde, segundo ele, ainda havia um “espírito nostálgico em um Rio decadente”. Locações que remetiam à sua época de aluno, perfeitas para relembrar os seus tempos colegiais, que descrevia com estilo inimitável. No local foi encenada parte de seu primeiro longa-metragem após um jejum de 26 anos: “A Suprema Felicidade”, de 2010.

Com uma pesada bolsa de couro a tiracolo, Jabor, atrasado como nunca devido ao cancelamento do voo, correu em desabalada pela escada do avião e, entremeando aquele monte de gente, chegou ao salão de desembarque em Congonhas. Virando-se para trás, acenou umas duas vezes, com aquele sorriso enorme. Uma curta amizade de ponte-aérea que não prosperou por pressa do destino. Esse jeito de ser do Jabor, bem seu espírito e estilo: simplesmente fascinante. Sentiremos muita falta dele.