A pátria, a rainha e a independência

Henrique Autran Dourado

Pátria, substantivo singular feminino, é terra, porém bem mais do que o lugar onde se nasceu ou se adotou. Não há palavra que melhor contemple o que ela define: não é um objeto, nem o chão – é um conjunto abstrato de significados e sentidos, de enlevação pessoal junto à nação e, em conjunto, de um povo. Tal sentido também é plenamente claro em outras línguas latinas, como a nossa: “patrie”, em francês, e “patria”, em italiano assim como em espanhol. Em inglês, temos “land” e “home”, que podem se alternar, como acontece no próprio hino americano: “The land of the free / and the home of the brave” (A terra dos livres / e o lar dos bravos). Isso se reflete no Hino Nacional Brasileiro, que ganhou letra de Osório Duque Estrada em 1922, quase um século após Francisco Manuel da Silva tê-lo composto como Marcha Triunfal, para depois tornar-se Hino da Abdicação (1831). Recebeu a letra de Duque Estrada só em 1922, quando fervia Cultura na Semana de Arte Moderna: hoje, cem anos, duzentos da Independência. Ambos marcos em nossa história, como este 2022.

Cantar o Hino Nacional deve ser um ato simples e puro, de profundo respeito. Sendo um Símbolo Nacional, está na lei 5.700, que os regulamenta: na versão instrumental, em Si bemol (Bb), sem a segunda parte (onde se cantaria “Deitado eternamente”, que, definitivamente, não se canta!) Se cantado, o Hino deve ser em Fá maior (A), e necessariamente apresentar as duas partes. O andamento, pulsação do ritmo, é fixado em 120 batidas por minuto. Há protocolos sobre dobra e hasteamento da bandeira, quem deve bater continência ou não, e até para onde se olhar durante a execução! (Militares devem voltar-se para de onde vem a música, a não ser que a cerimônia seja consagrada à bandeira ou ao presidente, devendo dirigir-se a uma ou outro). Os protocolos visam a manter o caráter cívico dos eventos, com o que se pode chamar de postura sóbria.

Liberalidades são meras transgressões, como a versão de Jimi Hendrix na guitarra, no Festival de Woodstock, em 1969, ou por apelo popular em ocasião oficial, como a intepretação de Lady Gaga na posse de Joe Biden, nos EUA. No Brasil, a memorável chamada de Fafá de Belém, “a capella” (sem acompanhamento), no comício das Diretas Já, em 1984. Na música clássica, há a “Grande Fantasia Triunfal” de L. M. Gottschalk sobre o Hino Nacional Brasileiro e, com Tchaikovsky, citações da “Marseillaise” em sua “Abertura 1812”.

Mudando de rumo e prumo, não há como não falar sobre a quinta-feira, dia 8 de setembro. A rainha Elizabeth II havia pedido que a levassem para sua propriedade em Balmoral. Lá, uma equipe chefiada pelo seu médico particular, Sir Huw Thomas, acompanhou o retiro, preparou o aparato médico e mandou chamar os familiares. Lembrava o ano de 1936, quando o rei George VI, pai de Elizabeth, foi cuidado pelo então médico real, Lord Dawson of Penn, que seguiu a fórmula do Dr. F. G. Chandler publicada na prestigiosa revista científica Lancet 12 anos antes: às 23h10 do dia 20 de janeiro daquele ano, Dawson aplicou 750 mg de morfina e 1 g de cocaína na jugular do rei George, o suficiente para matá-lo duas vezes (fonte: American Society of Anesthesiologists Library-Museum).

Não há explicação oficial até agora sobre a causa mortis e o momento da passagem da rainha; sabe-se apenas do retiro no Castelo de Balmoral e o acompanhamento médico. Sem dúvida, o sentimento patriótico da dinastia dos Windsor (críticas históricas e à monarquia à parte!) é incrivelmente robusto, desde os velhos tempos em que um trono vazio era objeto de cobiça por aventureiros. Mas tanto nos dias das mortes de George VI quanto Elizabeth II, o Reino Unido esteve protegido, mesmo que isso tivesse de lhes custar um final diferente. Assim a história diz, e assim foi cumprido: o príncipe Charles de Edimburgo tornou-se rei logo a seguir ao último suspiro de sua mãe, Elizabeth II, passando a ser, aos 73 anos, monarca de uma nação poderosa, culta e organizada ao extremo, e de um passado conquistador – e dominador. Chegara o momento do sinal livre para a senha: “The London Bridge is Down” (A Ponte de Londres Ruiu). A operação “The Bridge is Down” é um enorme complexo de medidas de segurança e informação que também sinaliza, codificada, a morte do soberano. Foi este o recado entregue à primeira-ministra Liz Truss e aos responsáveis pela segurança do Império. Até que ponto o Reino Unido resistirá com Charles III, da dinastia Windsor, diante dos focos de descontentamento reaquecidos a partir da Austrália, nações da África e outros países do Commonwealth, não se sabe. O reinado de Elizabeth foi um conto de fadas que perdurou muitas décadas com seu charme; agora, durante um bom tempo, com Charles e depois William e seu filho George, a coroa do Reino Unido restará sobre a cabeça de homens, salvo alguma improvável abdicação – ou morte.

Para registro: no dia 8 de setembro, o Senado brasileiro reverenciou os 200 anos de Independência Nacional, com cerimônia aberta pelo presidente da casa e a presença do presidente de Portugal, do presidente da Câmara, representantes de 24 países, os presidentes do STF e TSE, ministros das cortes superiores. O Hino Nacional cantado por Fafá de Belém, 38 anos depois, coloriu um evento cívico pleno de sobriedade e espírito democrático. Há 200 anos, o Brasil se tornava uma nação independente, data que mereceu de todos efusiva celebração.

O chefe da Nação brasileira esteve ausente para cuidar de assuntos particulares.