Agressões a mulheres, à imprensa e à democracia

Tem sido uma dificuldade galopante buscar entender com um mínimo de lucidez o que vem a ser, afinal, o conceito de “família” – particularmente, a “tradicional” – tão repetido nestas eleições. É certo, contudo, já ter tombado ao banal, por não sair mais da boca de quase ninguém na busca de votos.

Capotando na mesma ladeira, decaem os termos “pátria” e demais ligados a religiões em geral e a Deus em particular. Não raro, há expressões, imagens, chamados, de maneira “surreal”, juntando preceitos cristãos – senão o próprio nome de Jesus – a armas de fogo…

Fica a impressão de que aquela história de “amai-vos uns aos outros” também já corre na ladeira feito água suja a caminho do esgoto extremista.

Na mesma enxurrada de incoerências e obscuridades, avoluma-se o entulho reacionário de agressões generalizadas, seja à própria democracia, à civilidade e aos valores sociais e humanos, chegando-se mesmo, seguidamente, às vias de fato a caminho da morte (já não são raros os exemplos…).

Em meio à insanidade, acaba naturalizando-se, entre outros horrores, os crescentes ataques à imprensa e as agressões às mulheres – com especial destaque à covardia e canalhice quando ambos ocorrem ao mesmo tempo, vitimando mulheres jornalistas.

Nesta semana, mais um tétrico exemplo de um político a se dizer “do bem”, “de família” e temente a Deus ilustrou com tons de soberba selvageria o modus operandi e a verve desses falsos patriotas.

Na verdade, figuras que não mais conseguem esconder o apreço pela “tradição”, sim, mas aquela que, no passado, consistia em, por exemplo, bater em mulher sem medo de ser feliz, pela certeza de que nada lhes aconteceria.

Aliás, algo mudado completamente a partir da Constituição de 1988, razão pela qual esse naipe de político tanto a ataca, em evidente propósito de extinguir “direitos” garantidos ao povo em geral – e sobretudo, às mulheres e aos mais “frágeis”.

Que ninguém se engane: a ideia não é apenas distribuir revólver para matança à vontade, mas também garantir a “liberdade” de bater nos “inimigos” sem cerimônia – principalmente em quem menos consegue se defender “fisicamente”, como as mulheres.

O episódio envolvendo o deputado Douglas Garcia (Republicanos) e a jornalista Vera Magalhães, portanto, é emblemático destas eleições, devendo ser ressaltado como um marco da “ideologia tosca” de determinada corrente política, a qual, por sua vez, extrapola até algum espécime em particular, eventual candidato a autocrata, correspondendo a um movimento de retrocesso civilizacional.

A situação é grave, conforme o demonstra estudo da entidade Repórteres sem Fronteiras. Ele indica que, nos últimos anos, os insultos, as ameaças, as campanhas de descredibilização e outras manifestações de violências contra jornalistas e meios de comunicação se intensificaram, aparecendo “cada vez mais normalizados nas falas de políticos, autoridades públicas e seus seguidores”.

“As redes sociais são usadas como caixas de ressonância para esses ataques, e se tornaram um verdadeiro campo minado para os jornalistas. Essa tendência traz consequências deletérias para o exercício da comunicação e vida pessoal das e dos jornalistas, mas também para a saúde do debate público e do direito à liberdade de imprensa no país”, segue o estudo.

Durante as eleições (16 de agosto a 30 de outubro), a Repórteres sem Fronteiras (RSF) realiza um monitoramento sistemático das redes sociais, em particular do Twitter, para analisar e decifrar o alcance e os padrões por trás dessa hostilidade crescente contra o jornalismo.

Até o final do segundo turno, 120 jornalistas e comentaristas, além de perfis de autoridades públicas e candidatos às eleições, serão acompanhadas diariamente em parceria com o Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), centro de pesquisa de referência especializado em análise de redes sociais e tendências digitais.

A RSF publica análises semanais com base nos levantamentos. Outros conteúdos, infografias e informações sobre metodologias são adicionados ao longo do projeto.

“A terceira semana da campanha eleitoral foi marcada pela continuidade de ataques contra a emissora Globo e a apresentadora Vera Magalhães, principais alvos de agressões na semana anterior”, informa a RSF.

Entre os dias 29 de agosto e 4 de setembro, a Repórteres sem Fronteiras registrou 33.737 postagens nas redes sociais com termos associados a ataques e intimidações contra o jornalismo.

A maior parte dos conteúdos (25.250) foi direcionada a agressões difusas contra a imprensa em geral ou contra veículos de comunicação – e não visando jornalistas específicos.

A segunda semana da campanha eleitoral foi marcada por uma explosão de insultos contra jornalistas e meios de comunicação nas redes sociais. As sabatinas com candidatos à presidência no Jornal Nacional mobilizaram centenas de milhares de ataques.

O início da campanha eleitoral indicou aumento no engajamento nos perfis dos jornalistas nas redes sociais e, junto com ele, de ataques contra aqueles que cobrem a agenda política e eleitoral. A RSF registrou 66.809 posts com termos ofensivos à imprensa no período e 119 hashtags agressivas.

Ainda sobre o ataque a Vera Magalhães, diversas entidades de classe pronunciaram-se para expressar indignação e revolta. A profissional foi hostilizada e agredida verbalmente, na noite de terça-feira, 13, pelo deputado Garcia, durante debate promovido por UOL, TV Cultura e Folha de S. Paulo com candidatos ao governo de São Paulo.

Já no debate entre candidatos a presidente promovido pela Rede Globo, anteriormente, ela havia questionado sobre o desestímulo do governo federal à vacinação, o qual acabou causando muito mais mortes durante a pandemia de Covid-19 no Brasil – pergunta que, naturalmente, irritou os negacionistas.

No debate da Cultura, todos os ataques foram registrados em vídeo pelo próprio parlamentar, “o que demonstra a clara finalidade de intimidar e constranger Vera Magalhães”, acentuam as entidades.

O apresentador Leão Serva, que mediava o debate, tomou o celular da mão do parlamentar e o arremessou longe. Não teve uma reação mais efusiva por parte do deputado (talvez por ser homem?…).

As organizações signatárias do manifesto de repúdio (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, Associação de Jornalismo Digital, Federação Nacional dos Jornalistas, Intervozes, Instituto Palavra Aberta, Instituto Vladimir Herzog, Repórteres sem Fronteiras e Tornavoz) prestaram solidariedade à jornalista.

Também lembraram que ela já tinha sido vítima de desinformação produzida pelo mesmo deputado: em 20 de março de 2020, Garcia divulgara informações enganosas sobre o salário recebido por Vera Magalhães na TV Cultura.

“Ataques misóginos e sexistas, reproduzidos em larga escala, e campanhas de desinformação orquestradas por agentes públicos minaram o debate público”, alertam.

Diante de tanto descalabro e motivos para horror, resta saber se, realmente, a maioria da população compactua com isso. Por exemplo, com o impedimento da liberdade de expressão e de se informar de fato, com a agressão às mulheres, com os preconceitos generalizados e – de forma mais que significativa – com a troca de livros por garruchas “para o bem” do Brasil!