Henrique Autran Dourado
“Se eu não fosse diretor de cinema, teria sido diretor de circo”. A frase de Federico Fellini pode ser compreendida na plenitude em seu filme “La Strada”, de 1954. Anthony Quinn faz Zampanò, um brucutu que rompia correntes enroladas no peito; Giulietta Masina é Gelsomina, mulher que ele havia comprado: artistas de rua, das agruras nas estradas tortuosas (Gelsomina apanhava de Zampanò, que lhe cortara os cabelos com uma cuia, modelava-os com sabão para ficarem espetados e caiava-lhe o rosto com talco: um palhaço à sua moda).
Também italiana é a bela canção “Io Che Amo Solo Te”, de 1962, composição de Sergio Endrigo e sua música mais famosa: “Tem gente que ama mil coisas / e se perde pelas estradas do mundo / Eu, que amo só você / eu vou parar / vou te presentear / com o que resta da minha juventude”. Endrigo faz da sua amada a única, enquanto outros se perdem pelas estradas que a vida lhes oferece. Foi música-símbolo em tempos do domínio italiano nas preferências das rádios e, depois, televisões. (Não muito diferente do que o dramaturgo e crítico inglês Bernard Shaw comentara sobre a época áurea da ópera na Europa: “parece que é impossível compor em algum lugar que não seja à sombra do Vesúvio”, disse, referindo-se à Itália).
Do francês “Comme D’habitude” (“Como de costume”), de Claude François e Jacques Revaux, veio “My Way” (“Meu caminho”, ou “Do meu jeito”), de 1969, um dos maiores sucessos de Frank Sinatra: “E agora o fim está perto / e eu me deparo com o cair do pano / (…) Eu viajei cada uma e todas as estradas / e mais, bem mais que isso / eu o fiz do meu jeito”. É interessante que a versão americana tenha escapado totalmente à ideia do original francês, que fala do homem que acorda e cobre a mulher que ainda dorme, receando que ela esteja com frio, “como de costume”. A melodia serviu bem às duas versões, sendo que em inglês nos brinda com a ambiguidade do título, referindo-se às estradas por que o cantor viajou.
No Brasil, estradas foram assunto para poetas como Vinicius de Moraes, em “Judeu Errante”: “Hei de seguir eternamente a estrada / que de há tanto tempo venho seguindo / Sem me importar com a noite que vem vindo / como uma pavorosa alma penada”. Versos de 1933, o “poetinha” bem jovem aos 20 anos, ainda não muito definido em estilo; mostrava preocupações sociais, lado a lado com seus amores. Manuel Bandeira, 20 anos mais velho, já tinha sua marca-d’água bem delineada na poesia: “Esta estrada onde moro, entre duas voltas do caminho / (…) Nas cidades todas as pessoas se parecem / (…) Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a sua alma / Cada criatura é única”. Salta aos olhos que, no entender do poeta, é essencial que a individualidade sobreviva na massa anônima.
“Governar é abrir estradas”, foi o mote adotado por Washington Luiz para sua campanha rumo à presidência – equivalente à atual governança – do estado de São Paulo, em 1920. Cinco anos depois, elegeu-se presidente da República, tomou posse e sofreu um golpe de Estado militar em outubro de 1930, ao apagar das luzes de seu mandato, manobra que entregaria o poder a Getúlio Vargas menos de duas semanas depois.
O mote foi repetido por vários candidatos e políticos, incluindo o coronel Mário Andreazza, ex-ministro dos transportes de Costa e Silva e Médici, golpista por formação e passado. Foi responsável pela ponte Rio-Niterói, e dizia-se que teria mandado despejar corpos de presos políticos junto com o concreto dentro das enormes colunas da construção. Também foi da lavra dele a rodovia Transamazônica (BR-230), iniciada durante o governo Médici, em 1969 – um aqueduto de dinheiro público com muitos ralos, ainda inacabada após 52 anos. De quebra, foi signatário do AI-5.
Em 1838, com Tobias de Aguiar presidente do estado de São Paulo, a Assembleia Provincial aprovou a lei nº 10, que criava uma espécie de escola, o Gabinete Topográfico, a fim de preparar engenheiros e pessoal técnico para a construção de estradas. Não se falava ainda de automóveis, claro, os primeiros para uso popular só foram produzidos pela Ford em 1908, nos EUA. As equipes do Gabinete trabalhavam para levar estradas e pontes a lugares estratégicos até além do estado, abrindo caminho para charretes, coches, carruagens e vagões. Em 1917 já estava aberta a Calçada do Lorena na Serra, mas só em 1950 automóveis puderam trafegar pela chamada Calçada de Ubatuba.
Há 25 anos bem gerida pela CCR, uma sociedade anônima, a rodovia Presidente Dutra (BR-116) – Nova Dutra -, aos 70 anos de existência, deve passar por leilão internacional no dia 29 de outubro, com a promessa de modernizá-la, adotando tecnologia que é sucesso em países como os EUA, o “free flow” (“fluxo livre”). Aqui, porém, a novidade corre riscos, devido ao alto número de veículos inadimplentes (34%) e a sempre presente malandragem. Outra conquista, exigência do edital, seria o “wi-fi” ao longo dos 402 km, um grande avanço na comunicação: localizadores, segurança e emergências.
Nenhum barulho antiprivatista, pois que assim já é desde a fundação da CCR NovaDutra (1995), que transformou a rodovia em meio rápido e bem-acabado de ponte Rio-SP, muito melhor do que as tantas sofríveis estradas federais de todo o país. Difícil será a contabilidade fechar a planejada redução de 20% no preço nas praças de pedágio, que beneficiaria passageiros e metade do PIB brasileiro transportado pela rodovia anualmente. Sonhemos. “A poesia é necessária”, disse Rubem Braga, e “Navegar é preciso”, Pessoa.