Henrique Autran Dourado
Pode gostar de novelas da TV, filmes de caubói, de ação ou sci-fi, mas há horas em que o cidadão deve reservar seu tempo a um item de primeira necessidade. Não é luxo, um debate trata do espírito e da saúde dos necessitados (e dos que “têm fome e sede de justiça”: Mateus, 5, 6); vai de encontro à angústia da classe média, a se perguntar “vou ter emprego ano que vem?”, “vou conseguir honrar minhas dívidas?”, e ainda atiça a ansiedade dos poderosos quanto às suas ações na Bolsa, aplicações financeiras e “assets”, ativos de todos os gêneros. Claro que a vida é mais fácil para o conformista, “outsider” alienado, mas às vezes nem tanto: no filme “Il Conformista” (1970), de Bertolucci, sobre o livro de Alberto Moravia, o cidadão, enamorado de uma moça fascista, conforma-se com o regime de Mussolini, mas termina por aderir a ele, tendo como desafio ir para a França matar seu velho professor, militante antirregime.
Entre exercer opção por alguma causa e alienar-se existe um abismo às profundezas. Alguns, talvez por figuras retóricas caducas, outros quem sabe por modismo ou fanatismo. O conformista do filme – Marcello, interpretado por Jean-Louis Trintignant -, era a persona do que o dramaturgo alemão Bertold Brecht descreveu como O Analfabeto Político: “O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, (…) do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. (…) É tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia política”. Os que abraçam alguma causa que acham justa e os “analfabetos” conformistas estão em extremos opostos, cabendo aos últimos abrir palácios aos poderosos com seu silêncio. Integram a vida na pólis, à imagem e semelhança das cidades-Estados gregas da antiguidade, chamadas “poleis”, onde, convivendo em sociedade, eram todos espécies de “animais políticos”.
A vida em sociedade é permeada de política; aliás, alimenta-se dela, justificando sua existência (eis a pólis, de onde metrópole, política!) Os cidadãos, os vizinhos, a turma da sala de aulas, e, noutro microcosmo, a família, tudo são peças do jogo social. Alguém diria: “uns são mais iguais do que os outros”, coisa que sabemos, mas outra coisa é dividir nossa pólis entre dominadores e dominados, exploradores e explorados, uma dicotomia como querem filosofias mal compreendidas, reduzindo os demais estratos a pó. Há bem mais do que isso, e o cerne da política consiste justamente na diversidade – e por que não mesmo nos conflitos, pois é deles que emergem as soluções, diz uma velha e boa filosofia.
A universidade – nossa academia! – não deve se propor a inocular conhecimento nos alunos de forma vertical, prática que os impede de abrir o leque dos questionamentos necessários, de fazer pensar e autocriticar-se. É preciso indagar, pensar em forma de perguntas, para que não se tenha “verdades absolutas” em mãos sedutoras, porém inescrupulosas. A função do professor, mestre ou orientador, a partir de sua experiência e saber, é, ao contrário, provocar. Lembremos a Academia de Platão, criada c. 387 a.C. em Atenas, e a ideia de preparar os cidadãos desde crianças para a missão de serem filósofos-governantes que escolheriam seu próprio rei. (A Academia sobreviveu até o séc. 6, quando o imperador Justiniano, bizantino, a fechou, com o intuito de erradicar a cultura helênica pagã. E, claro, salvaguardar-se no poder).
Abre-se novo ato: em dias recentes, houve entrevistas no maior telejornal da TV. Primeiro, com o candidato Bolsonaro, em 22/08 – aos desavisados: não estava ali o presidente, mas o cidadão que também pleiteia a vaga; no dia 25/08, Lula, seu principal adversário. Não me proponho a analisá-las criticamente, não me lanço a isso mesmo porque quase todo jornalista especializado já o fez no dia seguinte, e com mais propriedade do que eu, mesmo observador atento, o faria. Apenas ressalto que os debates na TV como os que viriam, desde Kennedy x Nixon (1960), nos EUA, e em 1989, no Brasil – quase 30 anos depois -, entre Collor e Lula, na primeira eleição direta pós-ditadura, já são parte do calendário, ajudam o cidadão a equilibrar-se rumo à escolha que achar melhor. Óbvio é que a ausência de um dos dois líderes implicaria talvez na abstenção do outro, esquivando-se de se transformar na “berlinda” – ou “Judas”. E melaria o jogo democrático.
Este segundo ato se encerrou tendo nos imbróglios da cena final uma cavalgata. Se cada um tivesse dado a melhor contribuição para seus esclarecimentos – rebatendo com dignidade os ataques, atingindo pontos fracos com elegância, desvendando mentiras com verdades ou até exaltando virtudes alheias sobranceiras, teria sido admirável missão, porém quase impossível.
Contudo, também não baixou o espírito de Macbeth (c. 1603), tragédia do dramaturgo inglês William Shakespeare cujo papel-título é um general pronto para matar o rei da Escócia: “Porque o tempo se volta contra mim / devo apressar meus planos cruéis (…) / A todos, matarei pelo fio da espada”. O suposto Macbeth desta trama não desembainhou sua adaga matando quem estivesse ao redor: digladiaram-se vários, e o temor da degola não matou o rei Duncan, apenas o enervou. A pior tragédia possível desta encenação seria desaguar em um desastre para o país. O ato do debate é parte essencial de um drama moderno e grandioso, mesmo que por tortuosos caminhos: a democracia.