Henrique Autran Dourado
Em 7/7/77 (para os numerólogos ou adeptos da Cabala) fui morar nos EUA, mal havia terminado a Fefierj (hoje UniRio). De lá, cabia apenas observar, com medo, o Brasil em plena ditadura, e o que se passava em nossa República. Era presidente o general Ernesto Geisel, que sucedeu a Emílio Garrastazu Médici. O sobrenome Médici remetia à poderosa financeira e politicamente Casa dos Medici, com Cosimo à frente da dinastia e da República de Florença, Itália, na primeira metade do século 15. “Nosso” Médici era duro na queda, inflexível. Quando descobriu que um samba do Chico Buarque de 1970 não se referia a uma mulher, mas a ele mesmo – “apesar de você / amanhã há de ser / outro dia” -, mandou censurá-lo aos berros. Clara Nunes regravou a música (1971), e, obrigada, cantou na abertura das Olimpíadas do Exército daquele ano. Já a filha do Médici deixou escapar em uma entrevista que gostava do Chico. Pronto, bastou para que o compositor, em um show no Teatro Casa Grande, no Rio, tocasse um “roquinho” bem fuleiro, dois acordes e só dois versos, para deleite da plateia: “Você não gosta de mim / mas sua filha gosta”.
Geisel, sucessor de Médici, era um sujeito carrancudo, com os traços germânicos de estilo. Nada com cultura, na verdade sequer gostava de arte, da música dos “3 Bs” germânicos, Bach, Beethoven e Brahms, e nem de Wagner, que seduziu até Hitler. Menos cruel do que Médici, mas um tanto fechado, foi presidente por seis anos (1974-79). Desses, os últimos dois passei em Boston, onde acompanhei os mandatos de Jimmy Carter e Ronald Reagan. Seguia as eleições com o sentimento de estar participando do futuro do país que eu havia adotado.
De volta ao Brasil, aquela ópera bufa montada com a eleição indireta disputada por Maluf e Tancredo da qual nós, eleitores brasileiros, fomos simples espectadores. Maluf, colocado na disputa pelo regime militar, viu seu cacife ruir diante de Tancredo, mineiro astuto e perspicaz que tentara emplacar como vice Antonio Ermírio de Morais, poderoso empresário de família tradicional na política. A estratégia vazou, foi acolhido na vice José Sarney – homem que ainda tinha certa simpatia do regime, já agonizante. Acompanhei a eleição pela TV e refestelei-me na emoção de ter um candidato civil eleito, mesmo que indiretamente, para o cargo de mandatário do país. Porém, com a inesperada morte de Tancredo, logo antes da posse, assume Sarney, em meio a uma crise econômica sem precedentes.
Eu havia retornado ao Brasil com a esperança de ver meu país em plena democracia, com estabilidade econômica e paz. Quando perguntei sobre o futuro ao maestro Eleazar de Carvalho, que tinha sido fuzileiro naval, educado desde cedo na Marinha, ele me respondeu daquele jeito sério e irônico que lhe era característico: “Nunca vi um país fechar, mas sempre pode haver uma primeira vez”. Pouco depois, ingressei como professor na USP, e o grito de ordem era “Diretas, urgente, reitor e presidente”. Demorou: em 1990, após 26 anos de jejum eleitoral, tomou posse Collor de Mello, justo quando cravei meu primeiro voto para presidente! Concorreram, além de Collor, sagrado vencedor com o epíteto “O caçador de marajás”, Leonel Brizola, Paulo Maluf, Lula, Mário Covas e mais 18 candidatos. Após o impeachment de Collor assumiu Itamar Franco, seu vice, que governou de 1992 a 1995, ano em que, para tomar posse, concorreram em 1994 oito candidatos – na frente, Fernando Henrique Cardoso obteve 54,28% dos votos, e o segundo colocado, Lula, 27,05%.
Nos tempos do voto escrito, o Brasil passava por experiências surreais. Bom exemplo foi o imaginário candidato Cacareco – homenagem ao então novo rinoceronte do Zoológico do Rio – que em 1954 obteve 100 mil votos na eleição municipal, contra os 95% do partido mais votado e foi manchete até no NY Times. Mais de 30 anos depois, em 1988, o fenômeno ali se repetiu nas eleições para prefeito: puro deboche de protesto, Macaco Tião obteve fantásticos 400 mil votos! Escrevia-se de tudo nas cédulas, de rasuras a ofensas à senhora progenitora de algum candidato, entre outros desaforos mal-educados, constrangendo ou, às vezes, divertindo os mesários.
Exatamente dois anos depois da posse de Fernando Henrique foi implantada a urna eletrônica, que além de deixar de fora os adeptos do chamado voto zoológico, também impediu o antigo “voto carneirinho”, com olheiros contabilizando os nomes indicados pelo patrão – e a compra de votos pelos “coronés” que arrastavam eleitores atrás de algum trocado ou mesmo um prato de comida, sertões afora, na caçamba de caminhões. Pois a nova urna, empregada primeiramente em 57 cidades nas eleições municipais de 1996, revelou-se um sucesso, tornando-se exemplo para o mundo.
(Em 1932, em plena ditadura Vargas, o Código Eleitoral Brasileiro, em seu Art. 57, já fazia menção a “máquinas de votar”, mas as tentativas naquela época se mostraram efêmeras por absoluta falta de tecnologia. Houve outras experiências, em 1978 e 1980, mas foi só em 1988 que a máquina de votar criada pelo juiz Carlos Prudêncio e seu irmão Roberto foi colocada à prova na eleição municipal de Brusque, em Santa Catarina.)
A urna eletrônica que usamos, desenvolvida pela Microbras, Omnitech e Unysis, com apoio do CTA, do Inpe e de outras organizações, revelou-se ágil, absolutamente segura, e a adulteração dos votos impossível. No próximo 2 de outubro, mais uma vez, será nela que depositaremos todas as esperanças na candidatura do melhor presidente para o nosso país.