Henrique Autran Dourado
Das gravações de “Baby, it’s cold outside” (Garota, Está Frio Lá Fora), de Frank Loesser, prefiro a de Ray Charles e Betty Carter, diálogo entre uma voz possante e a suavidade juvenil e ingênua da cantora. Trata-se de uma conversa entre um homem e sua garota – ela, teimando para ir para casa, dizendo “eu realmente tenho de ir embora”, ele insistindo: “garota, está frio lá fora”, papo romântico e desencontrado: ele tenta forçá-la a ficar, ela retruca com argumentos, o pai deve estar andando de um lado para o outro, a mãe preocupada – já se iam as horas -, coisa que aconteceu na vida de tantas e tantos jovens (sim, rapazes também, como em “Trem das Onze”: “minha mãe não dorme enquanto eu não chegar”). Cegamente apaixonado, ele diz das mãos congeladas da garota, dos lábios deliciosos; ela expõe suas angústias, até que ele tenta induzi-la ao desespero, última cartada: “e se você pegar pneumonia e morrer?”. Pela música, “Loesser” abocanhou o Oscar em 1950.
Quem conhece o frio rigoroso sabe do que ele é capaz. Claro, há beleza na neve cobrindo ruas e calçadas, aquela brincadeira lá fora ou, para quem prefere, olhar através da janela os flocos planando. Mas calefação é fundamental, o frio chega a ser tão intenso que pode transformar a casa em sucursal da Antártida. Obedeça-se a legislação: em Massachusetts, onde vivi, há um mínimo obrigatório para o dia, 68 °F (20 °C), e outro para a noite 64 °F (~18 °C.), a serem rigorosamente cumpridos pelo senhorio do imóvel – o desrespeito à lei pode levar a sanções e até ao cancelamento da licença de aluguel.
Passei por uma situação terrível onde morava, e garanto que não foi nada fácil nem romântico, como na música. Certa noite, houve pane no motor do aquecimento, máquina que serve para levar água quente das tubulações do porão até o radiador de cada cômodo. Resultado: dentro de casa, mesmo com o isolamento das paredes qual um sanduíche de lã de vidro, o termômetro mostrava 5 graus, depois zero, logo um pouco abaixo. Tremendo, olhei-me em um espelho e vi minha boca arroxeada; enrolei-me em vários cobertores entremeados com jornais e espremi-me encolhido em um canto; antes, em desespero, acendi o forno da cozinha, contígua à sala – aos 20 e poucos anos não conhecemos o medo, somos todos imortais, não é? (Frase póstuma ideal para tamanha loucura). O inferno gelado terminou com a chegada dos bombeiros que um vizinho havia chamado, seguidos por uma equipe de manutenção.
Neve nas ruas seis meses por ano, caminhão de sal grosso passando para limpar a passagem. Porém, após derretida, se volta o frio intenso a água congela, formando um tapete invisível que está para os carros como uma pia molhada para um sabão (pé no freio nunca, mais risco de acidentes!). Nas grandes cidades, moradores de rua se aquecem nas saídas de ar da calefação dos metrôs, cobertores sobre o corpo e garrafa de “liquor” (qualquer destilado) na mão, desde que em um saco de papel, pois é ilegal expor bebida alcoólica em público. (Que contraste com os que podem dispor de um bom par de botas, calças forradas, casaco recheado de penas de ganso, bons gorros, cachecóis e “mittens”, aquelas luvas que têm o polegar separado e os demais dedos juntos, para mantê-los quentes!).
Em São Paulo não descemos a tais temperaturas, mas esses dias de maio são os tempos mais frios do ano. A diferença entre lá fora e cá é a morte certa e o risco de morrer. Aqui, casas e apartamentos, sem terem preparação térmica e calefação, podem ser aquecidos com uma lareira, para os felizardos que têm como comprar, entre o degustar de um bom vinho e momentos de adoração ao fogo, como nos rituais dos tempos de nossos antepassados.
Mas dê uma olhada no povo de rua, que sofre nas calçadas e praças das grandes cidades. Com a vida cada vez mais difícil, enrolados em cobertores entre pedaços de papelão e aguardando em desespero as benditas doações de roupa, comida, seja o que for: são velhos, grávidas, crianças, enfermos, situação de miséria plena: nossos deserdados, que não comparecem às eleições, e são contabilizados como números mas não têm “lenço nem documento”. A fome é maior do que a razão para tomar qualquer atitude que não aguardar um novo dia, depois mais outro, e mais um – se vier e se Deus quiser.
Segundo estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) de maio de 2020, a população de rua no Brasil era de quase 222 mil pessoas. Com o agravamento do desemprego, a crise econômica e social, seguramente após passados dois anos o número já é bem maior; as campanhas de arrecadação ajudam, mas são panaceia. Há também os que se abrigam em situação de extrema pobreza, moradias improvisadas, muitas vezes recolhendo gravetos, sarrafos e madeira de móveis velhos para acender seu “fogão” uma vez por dia, frente aos preços exorbitantes, o gás fora do alcance e até a falta do que colocar na panela.
A saga de Elsa e Anna, em “Frozen” (lit.: congelados) é uma produção de 2013 dos estúdios Disney, e serve mais à fantasia e à imaginação infantil. A nós resta acatar a natureza, como o poeta lusitano Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa), em “Quando Está Frio no Tempo do Frio”: “Que são para mim as doenças que tenho (…) / senão o inverno da minha pessoa e da minha vida? / (…) virtude da mesma fatalidade sublime / (…) o calor da terra no alto do verão / e o frio da terra no cimo do inverno”. Acatemos nós também, mas urge lutarmos para reduzir as desigualdades sociais em todas as estações do ano.