Henrique Autran Dourado
“É difícil encontrar a felicidade em seu próprio interior, mas é impossível encontrá-la em qualquer outro lugar” (Arthur Schopenhauer, 1788-1860, filósofo, autor de um sistema ético oposto ao idealismo alemão). Suas ideias envolviam a negação do “eu” e o ceticismo, cernes do pessimismo filosófico. Sua obra “O Mundo como Vontade e Representação” (“Die Welt als Wille und Vorstellung“), de 1818, fala da ”coisificação“ do “eu“ e das raízes do sofrimento. O sentido da vida seria consequência de uma negação total da vontade de viver.
O pessimismo de Schopenhauer não era um disparate, tinha fundamentos no que há de mais profundo, de Platão à filosofia indiana. Admitiram influência do pensador compositores como Schönberg, Mahler e Wagner, além de Freud, Jung e uma legião de escritores, como Herman Hesse, Thomas Mann e os nossos Machado de Assis e Clarice Lispector. Goste dele ou não, era uma filosofia consistente, de profunda reflexão, não um arroubo ignorante;impregnado de ateísmo, sim, que não se estende necessariamente a todos os seus seguidores.
Já o niilismo (do latim “nihil“, nada), é a rejeição primordial de fundamentos da existência humana, como a verdade, o conhecimento, os valores, a moralidade, chega a negar até a nossa própria existência (Veilt, Walter, em “Niilismo Existencial“). Ao contrário de Schopenhauer, o niilismo não é centrado em um filósofo, mas em uma atitude coletiva: não vê sentido nos valores da humanidade, o conhecimento é impossível, certas entidades (entenda-se aqui como divindades) ou não existem ou não fazem qualquer sentido. Como ponto de partida, o niilismo surgiu após Søren Kierkegaard (1813-1855), filósofo dinamarquês.
De certa forma, há algo em comum entre a filosofia do pessimismo, o niilismo e o negacionismo. Mas superficialmente: nunca, nunca podemos comparar este último a filosofias que marcaram a humanidade. Por quê? Porque o negacionismo é ingênuo, tem personalidade política maleável, não possui fundamentos ou lastro em filosofia alguma. Pode colocar “Deus acima de tudo” e agir inconsequentemente em nome dele, ou, conformista, simplesmente deixar de agir. Reflete uma paupérrima formação de pensamento, e uma espécie de ignorância endêmica, encobertas pelo véu de fanatismo.Mais do que nunca, é negação da ciência, do conhecimento adquirido e de tudo o que significa progresso para a humanidade. Como fermento para o bolo da manipulação do povo, já é, como se diz, um prato cheio.
O termo negacionismo foi cunhado pelo historiador francês Henry Rousso em seu livro “A Síndrome de Vichi“, de 1987 -bem recente, portanto. Trata do Estado encabeçado pelo marechal Pétain na II Grande Guerra: um regime autoritário, antissemita, homofóbico e xenofóbico. Como Estado independente, Vichy estreitou laços com os nazistas alemães que ocuparam posições no oeste e nordeste da França, até avançarem sobre a região metropolitana em 1942. Essencialmente, era um antissistema confuso, de negação, e, claro, instrumento para fácil manipulação de massas fanatizadas.
Uma forma ainda mais desorganizada de negacionismo são os atuais movimentos antimáscara e antivacina, que alimentam sobremaneira a pandemia, sabe-se lá a troco de quê. Em depoimento à CPI da Covid no dia 30 de setembro, o empresário Otávio Fakhoury, entre negações generalizadas,classificou as vacinas como “testes“. Disse– que viés machista e autoritário! – que ele somente levaria sua família para ser inoculada após certificar-se da eficácia dp imunizante (como se não bastassem os exemplos diários de comprovações científicas em publicações internacionais abalizadas e sucesso pleno em Portugal e na Alemanha). Homofobia não estava na pauta, mas o presidente da comissão, Omar Aziz, cedeu sua cadeira para que um senador, Fabiano Contarato, se manifestasse sobre o ataque virtual de Fakhoury à própria família dele (é casado com um homem e tem dois filhos):O negacionismo de Fakhoury lembra vários dos sintomas que Rousso descreveu em “A Síndrome de Vichy“, mas não necessariamente a mesma doença.
Trump é um negacionista com boa parte dos componentes exposta e outra camuflada. No entanto, com sua ascendência sobre o eleitorado de extrema-direita, exerce influência sobre o movimento antivacina nos EUA. Segundo o jornal The New York Times de 27/09, “Uma pesquisa da Pew Research Center, no mês passado, mostrou que 86% dos eleitores democratas receberam ao menos uma dose (N.: da vacina), enquanto os republicanos vacinados foram 60%“. E mais: “A divisão política da vacinação é tão grande que quase todos os estados confiavelmente democratas têm um índice de vacinação mais alto do que o dos estados seguramente republicanos“ (Trad. do A.).
No Brasil, não há estudos sobre esses estratos e suas ligações partidárias, até mesmo porque a eleição é direta, e não por colégios, como nos EUA – o que impossibilita um mapa à semelhança daquele do NY Times. Contudo, é óbvio que no Brasil, reconhecido pela luta sem trégua contra endemias e pandemias e um trajetória modelar de campanhas de vacinação desde o início do século passado, com Oswaldo Cruz, os antivacinas não são tantos, mas multiplicam-se digitalmente -este o dado novo na comunicação político-eleitoral. (Multiplicam-se aqui significa um apenas tornar-se muitos, por meio de artifícios de informática, movimentam-se simulando um número muito maior do que realmente são). Serão eles os coadjuvantes virtuais da antiga fábula “O rei está nu“.