O cientista, o juiz e a entropia universitária





(Entropia, nas ciências exatas: desordem)

Não sou muito de ler artigos não assinados dos editoriais dos grandes jornais. Mas um, no dia 4 de agosto em “O Estado” (“A justiça e os baderneiros”), chamou-me a atenção sobre um tema a que já me dediquei a escrever ao menos duas vezes. Em geral, textos assinados têm um perfil mais identificável, pois, sabendo-se quem os escreve melhor compreendemos a posição do autor, o que nos possibilita usar os “filtros” que quisermos, ao passo que os vários editoriais dos grandes refletem a opinião do jornal, permitidas certas variações. Apesar disso, achei preciosa a abordagem do artigo central da página 2: o juiz Guilherme Fernandes Cruz, da 9ª Vara Cível de Campinas, condenou nove alunos a indenizar por danos morais o professor do Instituto de Matemática da Unicamp Serguei Popov, impedido de dar aulas em “greve” estudantil, por constrangimento ilegal e depredação, entre outros, o que terminou por minar o movimento. (Importante lembrar que alguns estudantes tentam impingir que o direito de greve da classe trabalhadora se estende a eles – contra o princípio básico na legislação pública de que “se a lei omite, ela não permite”). Direito de faltar, claro, existe, e devemos respeitá-lo. E aos professores o de registrar faltas.

Na mesma época em que alunos invadiram o Conselho Universitário (CO) da Unicamp e fizeram piquetes para impedir as aulas, o professor Serguei Popov, que ficou conhecido do público por uma matéria de telejornal de uma grande emissora, não se conformou em ver seus caprichados cálculos na lousa serem apagados por um rapazinho como se fossem desenhos do tipo “scraps” (algo como rabiscos distraídos). Pois aqueles complexos cálculos haviam sido meticulosamente grafados por um cientista que poderia lecionar em universidades americanas. Popov, premiadíssimo brasileiro de origem russa, fluente em seis idiomas e que nos dá o privilégio de tê-lo como titular do Imec/Unicamp, traz na bagagem PHDs e diversos títulos da Universidade de Moscou, emoldurados por dezenas de publicações. Na reportagem, o professor aparece humilhado por um garotinho sonso e quase imberbe – coordenador do DCE! – que, em vez de fazer traquinagens sem causa em meio a horríveis batucadas, melhor estaria agradecendo à sua universidade a chance de ter o matemático como mestre.

Negando-se a ser humilhado e em defesa de seu direito de trabalhar, Popov entrou com ação na Justiça, cujo despacho determinou também a retirada de postagens ofensivas sobre o professor das redes sociais, sob pena de multa de R$ 1.000,00 diários. Isso levou a maioria dos alunos – seria essa uma maioria até então silenciosa, antes mercê de minoria radical? – a tomar uma posição e determinar o encerramento da “parede” e retomada das aulas, o que aconteceu em parte.

Nas “três públicas” estaduais as agressões, perturbações, depredações, vandalismos, humilhações e piquetes chegaram a níveis insuportáveis. Agiam em nome de uma obtusa “democracia direta”, e, parecendo seguir uma cartilha fascista (apenas parecendo, porque sequer devem saber o que seja, hoje compartilham outras cartilhas pré-fabricadas), acham que quem contraria a decisão de sua minguada e radical minoria é que está errado. Do texto do jornal, extraio outra observação fundamental sobre o tema, que vai ao cerne da questão: que as reivindicações “foram formuladas para não serem atendidas!” Cientes da crise que se abate sobre o país e ameaça abater, literalmente, as universidades, querem aumentos salariais irreais para servidores, creches, “mais alojamentos e restaurantes”. Simples assim. Isso, com o custeio e a máquina dos salários ceifando até os fundos de reserva e verbas de pesquisa. E mais: pensam que qualquer menção à legislação e à Constituição seria uma “criminalização” do movimento estudantil, como se a agitação de sua nau sem rumo flutuasse acima da lei, intocável. A Constituição Federal, nunca é demais lembrar, estabelece que “todos são iguais perante a lei”. O texto do jornal cita ainda o “arremedo de democracia direta como manto que oculta a defesa de ideologias autoritárias”. As palavras são certeiras, e o assunto deve abrir espaço para muitas reflexões.

Sou docente com tempo avançado de USP, e tenho visto de tudo. Mesmo em afastamento, acompanho todo esse processo que gira em espiral sobre si mesmo, e o faço agregando as preocupações naturais por meus dois filhos uspianos – uma da química, que se forma este ano, e que já me deixou seriamente apreensivo com a violência no campus algumas vezes, e outro, calouro da engenharia de materiais. Por sorte, essas unidades têm muito melhor consciência dos fatos e da preocupante situação da universidade, chegando no máximo a um tíbio e formal apoio. Quando necessário, recorreram até a “aulas clandestinas”, para evitar a interrupção do trabalho e estudos ante o patrulhamento impiedoso das minorias.

Temos – enquanto o país e o estado suportarem – um ensino público e gratuito, as bolsas de pesquisa que ainda restam e o melhor ensino da América Latina. Para os pobres que logram ingressar e conseguem sobreviver estudando, assim como para os poucos ricos que – sem generalizar, por favor – são os que podem se dar ao luxo de se imaginarem líderes franceses de 1968, se preciso estendendo-se mais um ou dois anos em seus estudos, e se chegarem alguma hora a se formar, deixarão visível em seu histórico a marca da desigualdade que apregoam combater.