Henrique Autran Dourado
“Mas pra quê / pra que tanto céu / pra que tanto mar / pra quê / De que serve esta onda que quebra / e o vento da tarde / de que serve a tarde / inútil paisagem”. Ao lembrar esta obra-prima de Jobim e Aloísio de Oliveira (1964, pleno golpe), pensei como eles: pra que tanta formosura, tanta exuberância e perfeição? Falo do Rio de Janeiro, de sua natureza, do colar de espuma adornando o decote das praias. Penso em tudo de magnífico que o universo, guiado pela mão divina, lá deu de construir; mas penso também em conflitos, milícias, maracutaias, rachadinhas, crimes, mortes “morridas e matadas”. (E quando falo “mortes morridas” – penso no Severino de “Morte e Vida”, do poeta João Cabral: a dos que foram chamados ao soar do pêndulo do relógio da vida, um badalo aguardado ou repentino: é a sedução mortal do porvir, o fado). Penso também nos óbitos que poderiam ter sido evitados. Mas por que o Rio, perguntariam? Oitenta por cento das novas infecções por Covid-19 na cidade são da variante delta, a mais silente de todas, com duas vezes mais contágios e internações (G1, 27/08) – medusa de tentáculos invisíveis.
“Pode ser / que não venhas mais / que não voltes nunca mais / De que servem as flores que nascem / pelos caminhos / se o meu caminho / sozinho é nada”. Nosso subconsciente, sem querer (querendo?), associa música e poesia a fatos cotidianos. Sejam as que vêm convidando à reflexão, como “Inútil paisagem”, ou as que nos assediam do nada, caindo-nos tal qual um insight: clareza súbita, luz que se projeta à nossa frente. Penso na associação que me veio ao pensamento, a infinita beleza da paisagem carioca em contraste com o mal que assola a cidade, elo que me ocorreu após ter lido notícias sobre a delta à noite ao acordar com o sopro do dia, o lume da manhã trazendo-me afago em versos de graça intensa. Mas…
“Pensem nas crianças / mudas telepáticas / pensem nas meninas / cegas inexatas / Pensem nas mulheres rotas alteradas / pensem nas feridas / como rosas cálidas”, poesia de corte profundo que convoca à reflexão pela caligrafia desenhada de Vinicius de Morais, em “Rosa de Hiroshima” (1954), tal como depois faria o compositor Krzysztof Penderecki em sua “Trenodia para as Vítimas de Hiroshima” (1960). Penso no padroeiro do Rio, São Sebastião, nos lindos versos a ele dedicados por Gil e Milton: “Sebastian, Sebastião / diante de tua imagem / tão castigada e tão bela / penso na tua cidade / peço que ores por ela”. A oração de Gil, devoto dos ritos católicos e afro-brasileiros no mais puro sincretismo baiano, vem somar-se às nossas preces. Em pleno ressurgimento da pandemia em sua versão mais multiplicadora, o carioca se rende aos luaus, pagodões, bailes funk e grandes aglomerações em praias e bares, amargo convite extensivo à alfa, beta e gama – e também à delta, o vírus já ameaçando soletrar todo o alfabeto grego.
São Paulo, terra da garoa e da pujança, dos arranha-céus, celeiro do capital que é pilar da economia brasileira, vem tendo algumas ações e resultados positivos, no contexto geral do país, com redução de infecções e mortes. Porém, da primeira vítima da delta reverberou o temor da contabilidade negativa, aquela progressão geométrica que tanto nos assusta. Em ano pré-eleitoral, há dificuldade de agir mais incisivamente para acossar a nova cepa como se fosse um exército inimigo. Parece que aguardamos o momento de assistir ao avanço de uma enorme onda a cobrir ruas e prédios, “ver emergir o monstro da lagoa” (como disse o Chico). Ou não, “quem sabe faz a hora”, do menestrel Vandré? O “Trem das Onze”, a Paulista, a música caipira que ainda resiste aos modismos do liquidificador da TV, a cidade que de noite se ronda à procura de um amor pode sofrer como o Sebastião do Rio: “cada parte do teu corpo / cada flecha envenenada”.
A delta já atinge São Paulo e bate forte no Rio, sempre refém do que há de pior, e que torna inútil qualquer paisagem. Há uma ventania de centro-noroeste, cruzando o país com suas cornucópias subterrâneas de verbas, dutos com ida e volta, pessoas sem cargos intermediando negócios com vacinas e até um motoboy a fazer vaivéns de 117 milhões em dois anos. Uma expectativa geral advinda do cataclisma anunciado, “que ao findar vai dar em nada / nada, nada, nada, nada…”, palavras do Gil em “Se Eu Quiser Falar com Deus”. Corre um rio de ações daqui e dali no STF, pautado pela Constituição e com a cautela que o momento demanda. E eis que até mesmo a Anvisa suspendeu o uso da proxalutamida, um bloqueador hormonal que vinha sendo alardeado pelo executivo como novo “tratamento preventivo”, mas cujos relatórios sobre testes em humanos reportadamente podem ter encoberto mortes (BBC News, 20/07). Há uma CPI que tropeça nos meandros políticos, barganhas e trocas de apoios, manobras de plenário, mas que ao menos vem expondo feridas, como as de Sebastião: “cada parte do teu corpo / cada flecha envenenada”. O mártir foi amarrado a um tronco e sacrificado pelas setas das milícias de Diocleciano, imperador de Roma.
De que serve, então, esta paisagem, se nos é inútil? Ela sobreviverá em plena formosura após cessadas as intempéries que nos assolam! Há boas expectativas, mas por ora há um véu negro a encobri-las – talvez como em “A Perdida Esperança” do Vinicius: “permanecerei imutável e austero / certo de que, de amor, sei o que ninguém soube / Como uma estátua prisioneira de um castelo / a mirar sempre além do tempo que lhe coube”.
E assim venceremos.