Viagem de baratinha

 

Uma viagem de Tatuí a Porto Feliz é hoje bastante rápida. Menos de uma hora em estradas asfaltadas. Além disso, com exceção de um pequeno trecho entre Boituva e a rodovia Mal. Rondon, a rota envolve algumas das melhores rodovias do Estado: SP-127, Castello Branco e Marechal Rondon. Mas nem sempre foi assim.

Muitos anos atrás, não havia nenhum asfalto. Estradas horríveis. Saindo de Tatuí, o caminho para Boituva era pela estrada da Americana. De Boituva em diante, outras estradinhas, até chegar a Porto Feliz. Com sorte, uma viagem de, pelo menos, duas horas.

Certo dia, na década de 1930, seu Pedro Holtz resolveu visitar o irmão Frederico, que morava na Fazendo do Pinha, no município de Porto Feliz. Como era vizinho de vovô Ernestino, combinou com ele uma viagem até essa cidade. Meu avô tinha uma “baratinha” Ford, daquelas com o famigerado “banco da sogra”.

Para os mais velhos, não é preciso explicar, pois sabem o que era isso. Mas as pessoas mais novas desconhecem esses termos “baratinha” e “banco da sogra”. Chamavam de baratinha os carros Ford ou Chevrolet de duas portas e banco inteiriço, que acomodava apenas duas pessoas dentro. Na traseira, o porta-malas era disposto de forma que formava um encosto de banco, formando conjunto com um assento.

O problema é que ficava do lado de fora, sem qualquer cobertura. Quem já leu histórias em quadrinhos do Pato Donald sabe que ele carrega seus sobrinhos nesse tipo de carro.

Mas, voltando à viagem do capitão Pedro Holtz (ele tinha essa patente da extinta Guarda Nacional)… Na cabine, estavam vovô, dirigindo, e seu Pedro, do lado da janela. No banco da sogra, iam Flora, minha mãe, tia Rita e Cidinha Holtz, a neta predileta do seu Pedro. Aonde ele ia, levava a Cidinha. Todas, inclusive minha mãe e tia Rita, chamavam seu Pedro de Pai Pedro.

Antes de partirem, dona Santinha, mãe da Cidinha, preocupada com as intempéries, cobriu a filha com um lenço enorme. Tão grande que quase escondeu o rosto da menina.

Partiram. Os socos da estrada eram intermináveis. A poeira quase insuportável. Os passageiros que estavam na cabine, sempre que cruzavam com outros veículos – poucos carros ou caminhões nessa época -, fechavam os vidros para impedir que a poeira entrasse.

Mas as três meninas no banco da sogra, tia Rita, minha mãe e a Cidinha, estavam totalmente desprotegidas. Poeira, vento e muitos socos… A viagem parecia interminável às duas. No começo, estavam rindo e conversando. O Fordinho, nas subidas, roncava um pouco e fazia muita fumaça, que antes de desaparecer, dava uma volta nos narizes das meninas. Mas de uma altura em diante nem abriam a boca, para não engolir poeira e nem a fumaça do escapamento.

As duas longas horas, que passaram soqueteando, chegaram ao fim. Como estava protegida pelo lenço providenciado por dona Santinha, que cobria toda a cabeça e até mesmo os ombros, Cidinha estava apenas com o rosto empoeirado, enquanto que tia Rita e minha mãe tinham o rosto, os cabelos e as roupas cheios de poeira.

Talvez devido ao chacoalhar e à ventania que sofreram, estavam esfomeadas. O irmão de seu Pedro mandou preparar um cuscuz especial para todos: metade de peixe e metade de linguiça. Alguém já comeu algo assim?

Todos comeram até que não restou nem migalhas do tal cuscuz. Ou era mesmo muito bom ou a fome o transformou em um manjar dos deuses. Como eram crianças, tia Rita, minha mãe e dona Cidinha ficaram brincando ao redor da casa, enquanto os mais velhos conversavam.

Mais tarde, saíram da fazenda e foram visitar a Gruta de Porto Feliz, onde os bandeirantes, em suas viagens aos confins do Brasil, paravam. Trata-se de um local histórico interessante, que vale a pena visitar para ter uma ideia de como as pessoas viajavam nos primeiros anos da colonização.

Mas logo chegou a hora de voltar. Mais uma sessão de socos, vento e poeira no banco da sogra da baratinha. As meninas, empoeiradas, desejavam tomar um banho e dormir, por isso, mesmo lembrando-se das agruras da viagem, foram subindo animadas naquele banco horroroso.

Para completar a viagem, caíram algumas gotas de chuva, fazendo com que a poeira grudada nas meninas se transformasse em lama. Os poucos pingos não se transformaram em chuva, mas reduziram um pouco a poeira em alguns trechos. Sobraram apenas os socos, o vento (que ficou mais frio) e a fumaça do escapamento. Nada que um bom banho quente e uma noite bem dormida não resolvessem. Mesmo assim, adoraram a viagem e mesmo hoje, cerca de 70 anos depois, ainda se lembram com muita saudade.

Hoje, apesar de prometido, ainda não está duplicado o trecho de estrada entre a rodovia Castello Branco e a rodovia Marechal Rondon, muita gente reclama. Imaginem então se tudo continuasse como antes?