Henrique Autran Dourado
Se é lenda ou história, tanto faz, é fato. No século 18 houve, em Ouro Preto (MG), uma contenda entre as paróquias de N. Sra. do Pilar e N. Sra. da Conceição, sobre a posse de uma imagem da Virgem Maria. Para encerrar a querela, os párocos acordaram em colocar um jumento a igual distância das duas igrejas, e aquela em cuja direção o animal rumasse ficaria com a santa. Como o dono do jumento era o vigário de Pilar, para lá o animal se dirigiu, claro. A palavra vigarista teria surgido, assim, de uma “ideia de jerico”. Mas quem “pagou o pato” foi o “cabeça de bagre”.
Um século depois, em Portugal contava-se que uma dupla de andarilhos, trapaceiros contumazes, chegava nas pousadas com um baú trancado dizendo-o cheio de dinheiro, e que eles estavam a serviço do vigário. Como o malão era pesado, pediam para deixá-lo escondido, para empreender uma curta viagem, ao fim da qual retornariam. Mas, por segurança, o baú não deveria ser destrancado. E pediam algum dinheiro emprestado para seguir caminho. Os donos das pousadas, honrados pela deferência, entregavam-lhes alguns mil réis. Mas os gaiatos nunca mais voltavam. Daí, viria, pois, “o conto do vigário”. (Fonte: Brasil Escola)
Deonísio da Silva, linguista conhecido meu de longa data, cita outras fontes, como José Augusto Dias Jr., em “Os Contos e os Vigários: a História das Trapaças no Brasil”, e fala de “Os Ladrões no Rio” (1904), de um tal Vicente Reis, então delegado de polícia, sobre um falso pároco espanhol. E não é que o genial Fernando Pessoa interessou-se pelo tema e escreveu que tudo surgira de um embusteiro português chamado Manuel Peres Vigário? O dicionarista e professor da USP Francisco Bueno credita a expressão ao “espírito irreverente dos ouvintes”, ao escutar os religiosos contarem aos incrédulos “da outra vida e da intercessão milagrosa dos santos”. Caloteiro, do francês “culotte”, um quase sinônimo que, ainda segundo Deonísio, no jogo de dominó se refere às pedras “que o parceiro não conseguiu colocar em jogo”. “Trocando em miúdos”, “calote” serve bem ao sujeito que fica devendo, “dá o cano”.
Mas vamos “tirar o bode da sala”, pois o tema da vigarice seria interminável se pesquisado a fundo, e “quem nasceu pra tatu morre cavando”. No Brasil, a prática da trapaça remonta ao Descobrimento – desde as trocas de espelhinhos pelas esmeraldas de índios deslumbrados até as Capitanias Hereditárias, o Brasil Colônia, chegando triunfalmente à República. No século 20, já sobrava embusteiro: Chico Buarque bem os definiu, em “Homenagem ao Malandro”: “Agora já não é normal / o que dá de malandro regular, profissional / malandro com aparato de malandro oficial / malandro candidato a malandro federal / (…) malandro com contrato, com gravata e capital / que nunca se dá mal”. Ode ao pilantra moderno, que vive “a cantar de galo” ou o chapa-branca, aboletado em cargo público e “mamando nas tetas” do poder.
Hoje, o caloteiro passou a empregar truque mais poderoso, a informática. “Hackers” e seus “trojans” e “phishings” (o vernáculo da boa literatura que dava tanto gosto perdeu para um idioma à parte, em inglês ou algo parecido, ou ainda um dialeto cifrado, de sílabas truncadas). Quantos já adquiriram produtos que não há de sites de lojas que não existem? Quantos foram achacados via WhatsApp, SMS ou mesmo pelo hoje claudicante e-mail? “Sua conta será encerrada, por favor entre em contato conosco em ‘venha@caianessa.com’ – que o levará a uma espécie de autocombustão computacional e financeira. “Sua conta no ‘Tolobank’ foi bloqueada. Para recuperá-la, insira seu ‘login’ e senha nos campos apropriados do link acima”, tendo ao fundo o logotipo perfeito da instituição. Se “cair feito um patinho”, não adianta “tirar leite de vaca morta”. Ah, e as compras em seu nome feitas via Internet, aquele programa ou “app” que você esqueceu no computador que vendeu e que ainda são cobradas no seu cartão sem que você autorize? Ou a renovação automática de um sistema operacional caríssimo que você não mais vai usar? Com sorte, você poderá reaver o prejuízo, cancelando a compra e recebendo novo cartão de crédito, driblando essas formas modernosas e elegantes de “dar um boné”. Que fale a sabedoria popular: antes “ficar com a pulga atrás da orelha” que “montar um porco” depois do “leite derramado”.
Retornando ao “vigarista” da memória popular, teorias acerca de suas origens vieram com frequência de Portugal via literatura, provérbios ou folclore, sem um rigor científico que carimbe um ponto de partida oficial para as versões usando o título dos reverendíssimos vigários. “Data vênia”, prefiro acatar o Fernando Pessoa, poeta e prosador lusitano da mais alta estirpe que contou sobre o comerciante Manuel Peres Vigário. Acossado por um farsante, Manuel foi levado a repassar notas falsas de 100 mil réis, retendo de cada uma 20 mil para si no final. Em uma estalagem, embriagado de vinho, negociou com o proprietário, pedindo-lhe um recibo de “apenas” 50 mil – o que o salvou, haja vista que o caso foi parar na polícia. Escapou do xilindró e entrou na cultura popular em “O Conto de Réis do Manuel Vigário” (publicado sob o título “O Grande Português” e disponível na Internet, um texto delicioso de Pessoa que merece ser lido). Para concluir, apoio a tese do poeta lisboense e coloco o “vigarista” na conta do ribatejano Manuel, dono do sobrenome Vigário. Façamos justiça e penitência aos párocos ordenados e paramentados, sempre a conduzir, como bons pastores, seus rebanhos de fiéis.