Henrique Autran Dourado
Assisti ao debate entre Donald Trump e Joe Biden, cheguei a comentar neste espaço. Não me satisfez a tradução simultânea por ótimos jornalistas brasileiros, isto porque se trata uma prática que requer técnica específica – é preciso falar e ouvir ao mesmo tempo, o que é absurdamente exaustivo. No exterior, quem trabalha com isso geralmente faz revezamento a cada 15 minutos. Com a fadiga, perde-se em cognição e clareza, o que com o tempo restou aparente.
Já para o chamado “VP Debate” (vice-presidência), optei pela CNN, em inglês. À medida que os debatedores falavam, eram exibidas “captions” no mesmo idioma – além de maior clareza para os estrangeiros e o público, em geral, o contingente de deficientes auditivos e surdos funcionais, nos EUA, é de dez milhões de pessoas. As legendas surgiam com ligeiro e esperado “delay” (atraso), mas transcreviam com quase perfeição. A mediadora Susan Page atuou bem, mas volta e meia deixava Mike Pence extrapolar sua fala para além dos dois minutos estabelecidos. Não houve aberrações como no debate dos candidatos titulares, ofuscado pelo exibicionismo de Trump. Page ironizou que não seria uma entrevista, mas um debate, e, com larga experiência, foi a primeira vez que uma profissional do jornalismo escrito (USA Today) fazia um voo solo como mediadora na TV.
Os separadores de acrílico entre os debatedores pareciam naturais, em tempos de Covid-19. E Mike Pence mostrou-se muito mais comedido do que seu parceiro de chapa, Trump, ao passo que a candidata a vice de Joe Biden, Kamala Harris, esteve bem mais à vontade do que seu par na contenda. Mostrou simpatia, abriu largos sorrisos, foi convincente e falou com clareza. Mas o que fez deste debate “VP” tão importante?
Em junho de 2021, Trump completará 75 anos de idade; se eleito, encerrará a gestão com 79. Já Joe Biden fará 79 em novembro deste ano e encerrará sua gestão aos 84, o que confere ao “fator VP” maior evidência: Trump, apesar de quatro anos mais novo do que Biden, está com Covid-19, um tratamento envolto em briefings nebulosos e contradições, e como acontece frequentemente, sequelas da doença são uma possibilidade a se considerar. Para Kamala Harris, 55, os tempos de “Black Lives Matter”, o eleitorado feminino e as pressões de Trump contra imigrantes latinos com status legal ou ilegais, além da questão da fronteira do México, pesam a seu favor na contabilidade. Mike Pence, 61, conta com o velho conservadorismo americano e a aguerrida extrema direita e o segmento evangélico, sua opção religiosa, enquanto algumas posições mais avançadas de Kamala levam radicais a imputar-lhe a pecha de anticatólica – principalmente por “trumpistas”, à frente o seu líder.
O prestigioso jornal The New Tork Times, em sua edição de 8 de outubro, fez uma análise do debate. Convidou, para tanto, nada menos do que 17 especialistas para opinar sobre o encontro. Houve divergências, claro, e uma sutil tendência ao empate: Jamelle Bouie viu o jogo amarrado, com cada debatedor cumprindo sua missão: com loas de Pence aos feitos – ou nunca feitos – de Trump, e Kamala exaltando as propostas mais populares de Biden. Elizabeth Bruenig disse que Pence pode ser evangélico, mas não tem carisma, e deu o pódio a Kamala. Christopher Buskirk acha que Pence levou, com seu jeito calmo, profissional, competente e focado, e Linda Chavez acha que Kamala foi com certeza a vencedora: deu-se melhor no debate com Pence do que Biden contra Trump. Apontou-a como exemplar ao exigir paridade no tempo, dadas as “extrapoladas” de seu rival. Os demais analistas variaram entre essas observações.
Na manhã do debate, o mesmo The New York Times, a despeito das divergências apontadas pelos analistas convidados ao pós-programa, já havia retomado uma prática de tempos mais recentes na grande imprensa norte-americana: retirara a máscara para assumir sua opção política. Em editorial com chamada na primeira página, uma foto de um Biden sereno à frente de um lago de águas igualmente serenas como um grande espelho, conclama: “Eleja Joe Biden, América”, e, logo abaixo, “O ex-vice-presidente é o líder de que nossa nação precisa agora”.
Mais um dia, e a imprensa traz a notícia de que a decisão dos organizadores do debate foi pelo modo on-line, como proteção aos presentes. Logo em seguida, Trump manda informar que não participará, em que pese ainda estar em fase que representaria algum perigo de contágio para Biden e o mediador – mas não insistiu no “ao vivo”, apenas pontuou que não irá. O que o deixa confortavelmente defeso em duas hipóteses: primeiro, apresentar-se como um candidato que milhões de pessoas já sugestionadas poderiam enxergar como doente – qualquer mínima palidez, a voz, uma tossida, um pigarro, talvez, já chamariam a atenção. Segundo, a equipe médica pode tê-lo alertado severamente de que ele não deveria comparecer devido aos óbvios riscos. Como bom investidor em jogatina (como o Casino Trump, em Atlantic City) e bom jogador, ele sabe a hora de apostar pesado. Ou, matreiro, de blefar.
Para piorar a situação de Trump, caso acontecesse o debate, no dia 8 de outubro o britânico The Guardian trouxe uma notícia de grande repercussão, especialmente entre religiosos, a direita radical e a maioria conservadora: o tratamento alardeado por Trump como potencial em sua cura, o Regeneron, é um coquetel de anticorpos que utiliza células de fetos colhidas em abortos eletivos (por opção da gestante) prática por ele combatida energicamente. Pura lenha na fogueira.