Henrique Autran Dourado
Nesses tempos de isolamento, a população se envolve um pouco mais com a arte do que de costume (literatura, música, cinema). Ela é bom alimento para o espírito das pessoas sós, sejam isoladas em seus cantos, ou em dois, três, quatro. Esse afastamento das comunidades com que antes convivíamos – no trabalho, no lazer, amizades e família – impõe muitos sacrifícios. No aguardo da ultrapassagem da grande zona de perigo da pandemia, a solidão é parte do único remédio comprovado até agora: isolar-se.
Por outro lado, se a solidão leva a um melhor autoconhecimento, surge, talvez raramente, um lado psicótico ou absurdo, como o do austro-húngaro Franz Kafka, de Praga (hoje República Checa), autor de “O Processo” e “A Metamorfose”, em seu mundo interior extremamente confuso: “Eu não tenho quase nada em comum comigo mesmo, e devo permanecer quieto em um canto, feliz por poder respirar”.
O amigo violoncelista Zygmunt Kubala, surpreendido pelo falecimento precoce de sua esposa Lina, também amiga e pianista, tinha um perfil cativante, introspectivo e absolutamente peculiar. Fomos parceiros e dividimos quartos em uma turnê por Minas – tocamos no Palácio das Artes e na Catedral de Mariana com um organista alemão e outros estrangeiros, entre os “nossos” e os importados.
Vésperas de um Natal. Eu estava no Rio com meus pais quando veio a notícia do falecimento da Lina, em São Paulo. Trasladaram-na e o funeral lá aconteceu, e eu fui. Acho que Ziggy (o apelido dele) ficou bem abalado, mas, como bom polonês, com aquela carga pesada de sofrimentos passados de gerações, suportou bem o fardo. Em 2003, gravou um lindo CD, “Solo, ma Non Abbandonato”, com peças para violoncelo solo de Bach a Telemann, de Schumann a Max Reger, tudo com seu toque profundamente inspirado. Em 2007, faleceu de aneurisma na aorta sobre um palco, durante apresentação em uma igreja de Minas. Tocando, como era seu desejo manifesto para o dia que isso viesse a acontecer, “Solo, ma Non Abbandonato”.
Em 1965, os irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle compuseram uma obra-prima: “Porque eu preciso aprender a ser só / poder dormir sem sentir teu amor / saber que foi só um sonho e passou”, com belas e discretas aliterações nos últimos versos. Recebeu uma inteligente paródia de Gilberto Gil: “Eu Preciso Aprender a Só Ser”. Do nosso cancioneiro popular saiu “Marinheiro Só”, que alterna cada verso com o refrão, entoado em coro, que dá título à música: Eu não sou daqui / (coro:) marinheiro só / eu não tenho amor / (coro) /eu sou da Bahia / (coro) / de São Salvador”.
Em 1966, Edu Lobo e Torquato Neto criaram verdadeira ode à solidão sobre uma sequência de acordes impressionistas com o baixo descendente, tristeza de dar dó: “Adeus / vou pra não voltar / e onde quer que eu vá / sei que vou sozinho”, para no final chamar a amada, “nem que seja só / pra dizer adeus” (https://www.youtube.com/watch?v=SdRhB4kNN5o). Do mesmo ano é “Eu e a Brisa”, de Johnny Alf, até hoje repertório garantido nos shows de todos os românticos do país: “Ah, se a juventude que essa brisa traz / ficasse aqui comigo mais um pouco / eu poderia esquecer a dor / de ser tão só / pra ser um sonho”.
Também em 1966, a dupla norte-americana Simon & Garfunkel fazia a contradita de “Nenhum Homem É uma Ilha”, do inglês John Donne (1572-1631), com “I Am a Rock”: “Eu construí muros / uma fortaleza profunda e cruel / que ninguém poderá penetrar. / Não preciso de amizades / amizades causam dor (…) / eu sou uma rocha / eu sou uma ilha”. Uma rude visão do bunker em cujo interior submergiu uma carcaça com que se protegeu o personagem, para devorar-se o próprio corpo, perdendo de vista as palavras de John Donne.
“Açaí”, de Djavan, veio em 1982. O título, em tupi-guarani, quer dizer “fruto que chora”. “Solidão / de manhã / poeira tomando assento / rajada de vento / som de assombração”, música rica e lindíssima que foi sucesso com Gal Costa e encantou na voz do autor. Já “Eu Só Quero um Xodó”, sucesso de Dominguinhos, Sivuca e Osvaldinho, tornou-se um hit também com Luiz Gonzaga: “Que falta eu tenho de um bem / que falta me faz um xodó / mas como eu não tenho ninguém / eu levo a vida assim tão só”.
De Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, “Cais” (1972), na voz possante do cantor, revela o poder que o espírito tem de construir usando a argamassa da solidão: “Para quem quer se soltar / invento o cais / invento mais que a solidão me dá” / (…) invento o amor / e sei a vez de me lançar”.
Publicado em 1972, “Solidão Solitude” é um livro de meu pai, Autran Dourado, que reúne textos escritos durante a década de 1950, à parte do fio de sua obra. Buscando afinidades diversas entre contos, ele os agrupou em quatro blocos de três. As estórias passeiam por um idoso que amarga o passado ao vislumbrar o oceano; uma mulher que se afoga em angústias e chora desesperadamente todos os dias; a pedofilia e o homossexualismo encobertos pela bruma sacra dos corredores de um internato; e, claro, o medo da morte, o sofrimento. Esses são alguns dos pontos que unem os quatro grupos de três contos em torno de elos comuns sobre os quais paira a solidão, como uma nuvem escura. Segundo ele, a decadência do ser humano e a loucura são alguns padrões que nos norteiam. Os textos foram escritos e selecionados com critérios literários e outros absolutamente pessoais para a composição desse conjunto de 12 contos, pensados à exaustão e comungando sentimentos e percepções comuns: solidão, solitude.