Henrique Autran Dourado
Perder peso, repete-se sempre. Mas se aquele “a mais” já estava lá no ano anterior ao passado, não o há que daquele se perder neste, se nada no de antes se ganhou (embora o extra em dever valha ser queimado). Aos que, ao revés, quilos lhes faltam – esquálidos, desvalidos, esfomeados, modelos anoréxicas e bulímicas, viciados nas pedras do caminho -, ganhar peso é de bom voto. Cortar os cabelos – ou, diz melhor o inglês, “ter os cabelos cortados” -, é volta-face que se transubstanciaria em bom espírito e humor, e quem sabe a ansiada conquista amorosa? Ensejarão as novas madeixas ou desenhos nos cabelos novos olhares ou rememoranças de antigas paixões? “Não sei se você ainda é a mesma / ou se cortou os cabelos / rasgou o que é meu”¹.
Roupa nova faz falta, até a do Rei o rato roeu! Uns panos novos para nova fase, um elã arremedado para sentir-se rejuvenescer (apesar do ano a mais vivido); aos que amargam até a falta de um velho paletó ou rotos farrapos, que sejam guarnecidos do que lhes proteja do rigor da chuva, do frio ou do “serenô da madrugada”, que “não deixou meu bem dormir²”.
Um carrão zero, para os mais abastados, um iate para os milionários! “O barco, o automóvel brilhante³”, só porque entre ricaços “navegar é preciso³” no mar das aparências. Mais justo seria tê-los a menor, com menos luxos e narcisismos; a outros, algo simples e útil, um saveiro para pescar, uma bicicleta para fazer entregas, um caderno para anotar as contas? “Mais que isto, só Jesus Cristo, que não sabia nada de finanças nem consta que tivesse biblioteca”³). Venha a esperada justiça social, trabalho de corações e mentes que se preocupam com ela: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, pois serão saciados”4. Aos que foram perseguidos, ergam-se eleitos “por fazerem a vontade de Deus, pois deles é o Reino dos Céus”4.
Às mulheres caberá acolher o ano novo, nos conformes de seu uso e costume, depilando as pernas para levantar as saias quando chegam as ondas; às humildes não, pernas pra que te quero, basta colocar os pezinhos na água fresca do mar que traz, espumando em vaivém, o novo dia, a plena madrugada; às adeptas de cultos que reverenciam o mar e sua rainha, apenas pés calejados da labuta do ano e saúde, que agradecem em suas danças; recolhem flores murchas da água enquanto o arrastão despeja sua colheita viva na areia da praia, ao sol raiar: “ê, puxa bem devagar / ê, ê, ê, já vem vindo o arrastão”5. É a rede descarregando em abundância como fosse o milagre dos peixes, rito que se repete a cada dia desde sabe-se lá quando: “Eles não falam do mar e dos peixes / nem deixam ver a moça, pura canção / nem ver nascer a flor, nem ver nascer o sol”6. Ah, o bendito pão de cada dia! Uma bela cantina para os afogados na ressaca dos copos que viraram nas festas de Baco e Dionísio; os Severinos, “fazendo “dos dedos isca pra pescar camarão”7; aos que buscam nas latas dos becos o pão do dia e às vezes apenas o único sustento: que recebam dele seu mais recôndito milagre, e por ele louvarão ao Senhor.
Que chegue o novo, traga a beleza dos dias melhores! “… belo porque o novo / todo o velho contagia. / Belo porque corrompe / com sangue novo a anemia”7. Abram portas e janelas, deixem o sol penetrar, recebendo-o de braços abertos qual aquele que, gigante, os ergue sobre a Guanabara. Novo é a visita que se espera há um ano, carece recebê-la, assuntar, servi-la, agradá-la. Venha desatar nossos nós, estancar nossas dores, pruridos, as feridas e mesmo as gangrenas, as angústias dos feridos, o sofrimento de tantos (impossível apagar chagas idas, pois que cicatrizes). “Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus”4.
Passar o pano no ódio, no racismo, na xenofobia, na misoginia, na homofobia, nos preconceitos e no desrespeito a culturas, crenças e livre expressão. Apagar a lousa em que foram arquitetados os pensamentos e atos mais nefastos e cruéis ao homem e à mãe-natureza – que natureza-morta sejam apenas as pinceladas de lindos vasos de flores e frutas, tintos pelo óleo de habilidosos pintores.
Bom ano para islamitas, judeus – incluindo os sefardi, antepassados de boa parte de nós -, budistas, cristãos de todas as igrejas, xintoístas, taoístas, umbandistas, kardecistas, os temerosos ao Tupã-trovão, e, como Francisco, abençoados sejam também os ateus, agnósticos e os que têm dúvida de fé, porque todos são filhos de Deus. Que as religiões não se submetam como massa de manobra aos poderosos, e que estes não se sirvam dos que creem para seu levantar as muralhas de seu poder. Que o novo entrelace as mãos de nossos negros, mulatos, mamelucos, brancos, caucasianos, japoneses, chineses, coreanos, latinos imigrantes ou refugiados, indígenas de todos os matizes (aqui desde muito antes de nossos antepassados): guaranis, caiovás, mbys e ñandevas; ticunas, os caingangues kamé e kaiurukré; os macuxis, os terenas, os guajajaras; os ianomâmis, os xavantes, pataxós, potiguaras. Todos, apesar de “humilhados e ofendidos”8, suas terras arrasadas por grileiros e desmatadores sob a vista grossa, proteção ou mãos dos poderosos; com frequência cruelmente assassinados, ainda se multiplicam em ritmo dobrado: 3,5% para 1,6% do resto do país9. Um novo ano novo!
[1: Chico Buarque. 2: Folclore Brasileiro. 3: Fernando Pessoa. 4: Evang. Mateus, 5: 3-12 (JFA). 5: Vinicius/Edu Lobo. 6: Milton/F. Brant. 7: João Cabral de Melo Neto. 8: Romance de F. Dostoiévski. 9: IBGE]