Beatles, Caetano, LSD, aborto e comunismo

Henrique Autran Dourado

Em “Revolution” (1968), Lennon e McCartney cantam: “Você diz que quer mudar o mundo / (…) todos nós queremos mudar o mundo / (…) que vai mudar a Constituição / (…) nós gostaríamos que você mudasse de ideia / (…) Mas se carrega imagens do camarada Mao / não vai conseguir nada de ninguém”.  Um não ao líder comunista chinês Mao Tsé-Tung e outro à ideia de alterar a intocável Constituição inglesa: o rock dos Beatles era apolítico e conservador.

Em “Back in the USSR”, a dupla fala da União Soviética: “Peguei um voo da BOAC em Miami Beach / (…) cara, eu tive um sonho terrível esta noite / estou de volta à USSR / você não sabe o quanto é sortudo, garoto”. Viajando pela antiga companhia o personagem diz que passou mal, teve enjoo a noite inteira e retornou à União Soviética, bradando aos que ficaram “vocês não sabem como são sortudos, caras”.

Os Beatles receberam a MEB (Ordem da Maior Excelência do Império Britânico) das mãos da rainha por levarem o nome da nação a píncaros tão altos desde a vitória na Segunda Guerra. Os “fab four” (“quatro fabulosos”) eram bem-comportados em seus terninhos de alfaiate e cabelos bem aparados.

Depois de 1970, desfeito o grupo, Lennon tornou-se um “revolucionário pacifista” que sonhava em transformar o mundo compondo no piano Steinway branco de seu amplo apartamento em um prédio na frente do Central Park nova-iorquino, em cuja calçada seria assassinado em 1980. Seus protestos iam de palavras de ordem confusas a “nudes” como o famoso duplo traseiro, ao lado da esposa Yoko Ono.

Caetano Veloso atuou em movimentos pacíficos como a passeata dos cem mil com inúmeros artistas, intelectuais e religiosos de diversas crenças, unindo-se a eles no protesto contra a censura e as prisões.

(O AI-5 não poupou da cadeia gente indefesa como um escritor e amigo de meu pai, Hélio Pellegrino, ou um primo, frade dominicano, Carlos Alberto Libânio Christo, ambos por delito de opinião. Com ele, mais três frades (incluindo frei Tito, que se enforcou em um convento em Paris em 1974, vítima de delírios recorrentes após torturas) amargaram “la dura cadena”. Carlos Alberto “pagou” quatro anos e ao final foi condenado a dois, restando-lhe um impagável “saldo credor”. Já Caetano e Gilberto Gil, após a prisão, partiram para o autoexílio em Londres, de onde, remoendo-se de saudades do Brasil, faziam das coisas de nosso país temas recorrentes para suas músicas).

Nesta altura, lendo o título deste artigo e as preleções sobre os Beatles e Caetano, o leitor bem informado sabe do que vou falar. Daí a indispensável breve digressão sobre o grupo inglês e Caê, um senhor nascido há 77 anos em Santo Amaro, Bahia. Além de compor e cantar, ele é um leitor voraz, apaixonado por Bandeira, João Cabral, Jorge Amado e Fernando Pessoa – ícone da poesia lusitana, de quem musicou (poema atribuído a ele, link ao final) Os Argonautas: “Navegar é Preciso”.

Em um programa de TV o apresentador Flávio Cavalcanti sorteava cartões; vencia o primeiro entre os competidores que apertasse um botão e cantasse música e letra com a palavra dada. Caetano, disputando com Chico e outros grandes nomes, era imbatível: sabia todas as letras, mesmo em outros idiomas. Na vida, sempre que falou sobre literatura Caetano mostrou ser um leitor contumaz.

Nesta primeira semana de dezembro, matéria da Veja trouxe um novo personagem, Rafael Nogueira, que cometeu a frase que serve de título ao assunto: “Presidente da Biblioteca Nacional associa Caetano Veloso ao analfabetismo”. Um disparate sem tamanho e, pior, vindo de uma pessoa desconhecida, atingindo artista do porte de Caetano.

Outro “prócer” da Cultura é o novo diretor da Funarte, “maestro” (sic) Dante Mantovani: “Soviéticos infiltrados na CIA distribuíram LSD em Woodstock” (O Globo, 2/12/19) – frase alucinada, como convém ao tema. Por sua vez, na mesma data o Estadão publicou: “rock induz às drogas, ao aborto e ao satanismo”. Mantovani, que havia atacado nossa atriz maior, Fernando Montenegro, foi empossado no lugar do renomado pianista Miguel Proença, que era titular do cargo e havia tecido elogios à artista, e logo foi exonerado (“et pour cause”, como se diz). Mantovani delira nas conexões entre “droga, sexo, aborto e satanismo”, ou quando diz que os Beatles teriam sido “invenção socialista para garotas abortarem” (revista Época, 2/12/19).

Sérgio Nascimento, nomeado presidente da Fundação Palmares, fechou a semana da “nova cultura” negando (ele próprio, negro) a existência de racismo no Brasil, dizendo que a escravidão foi benéfica e que o movimento negro deveria ser extinto (ibid.). A Justiça mandou anular a nomeação, mas a União recorreu à AGU.

Os três receberam orientação direta ou indireta de Olavo de Carvalho, um ex-astrólogo que se autodeclara filósofo e é chamado de guru por seus seguidores. Sem estudos ou qualquer formação específica, foi comunista na juventude e hoje, renegando o passado, comete equívocos considerados juvenis ou simplesmente falhos pelos acadêmicos de história e filosofia. Dada sua língua ferina, já foi inúmeras vezes réu em crimes de injúria por instituições, personalidades e jornalistas. De seu bunker-clausura em Richmond, Virginia, um dos estados do historicamente conservador sudeste dos EUA, elucubra ideias e teorias radicais, excêntricas e polêmicas, objetos de adoração de seus obstinados defensores, que creem estar seguindo um gênio.